terça-feira, 26 de dezembro de 2017

SOBRE "O HOMEM QUE AMAVA OS CACHORROS"



Na minha opinião, os dois fatores básicos que explicam a excelência de “O homem que amava os cachorros”, do escritor cubano Leonardo Padura, é a qualidade narrativa do livro e a crítica (progressista) que faz do socialismo realmente existente, uma realidade bem conhecida pelo autor... Apesar de todo o sucesso internacional e podendo viver na Europa, Padura prefere continuar vivendo em Cuba, na mesma casa em que nasceu e dirigindo seu carro velho de muitos anos...

Graças certamente ao seu talento narrativo, demonstrado em romances policiais bem sucedidos, ele consegue manter presa a atenção do leitor até o final desse romance histórico, que na edição brasileira da Boitempo conta com mais de 500 páginas. O livro é constituído por 30 capítulos que, variando no tempo e no espaço, se concentram, dependendo das exigências narrativas, em algum destes três protagonistas: 1) Ivan, um escritor frustrado, morador na Cuba do nosso tempo (o cap. 1 se passa em 2004); 2) Trotsky, o líder exilado da Revolução Russa, residente em diversos países desde sua deportação em 1929, sendo o último deles o México, onde foi assassinado, em 1940; e 3) Ramón Mercader, o comunista espanhol, egresso da Guerra Civil em seu país, que cumpriu a tarefa que lhe foi atribuída, a mando de Stalin. Como se sabe, Mercader infiltrou-se na casa em que morava Trotsky, ganhou a confiança dos seus moradores e acabou por matar o líder soviético, golpeando-o com uma picareta. Embora a história de Trotsky seja bem conhecida, não o é a de Mercader. E isso exige mais do talento de ficcionista de Padura que, a partir dos (poucos) dados conhecidos sobre o assassino, reconstrói a trama em que está envolvido, mantendo sempre o interesse do leitor. Dessa trama participa a mãe de Mercader, militante do partido, e os agentes russos vinculados à NKVD (polícia política) e ao estado soviético.

Interessante também é o retrato psicológico feito do jovem Mercader, que no início acreditava realmente que estava prestando um grande serviço à causa que abraçou. Mais tarde, já na URSS, após cumprir sua pena no México (20 anos), não aparenta mais estar tão certo disso... Lá ele reencontra seu antigo mentor russo, que revela então todo o cinismo de quem está bem consciente das mazelas do período stalinista ao qual serviu... O livro, mais do que simplesmente condenar o assassino pelo ato abominável que cometeu, traz elementos que permitem vê-lo também como vítima das circunstâncias históricas de seu tempo, um tempo brutal de conflito ideológico, da Guerra Civil Espanhola, de ascensão do nazifascismo, do auge da autocracia de Stalin e do início da II Guerra.  

O romance mostra não só a verdadeira face da vida na URSS stalinista, sob o signo do medo e dos privilégios da burocracia. Mostra também -- e esse é outro aspecto notável do romance – a vida em Cuba nas últimas décadas do século XX e início do XXI, criticando-a direta ou indiretamente, por meio da descrição dos percalços e da vida de Ivan, um escritor frustrado, cuja carreira foi sufocada pelas circunstâncias próprias do regime. A frustração de Ivan se agrava com a morte da esposa e o abandono dos filhos que, como outros de sua geração, preferiram morar em Miami.
Ivan conhece na praia, por acaso, um espanhol chamado Jaime Lopez, com seus dois belos galgos russos. Tem vários encontros com ele, que demonstra saber muito sobre Mercader. Trata-se, na realidade, de mais uma das diversas identidades falsas deste. Está em Cuba porque as autoridades russas permitiram que Mercader emigrasse para lá, e é ali que ele virá a falecer.  Assim como Trotsky, Mercader também era um homem que amava os cachorros...


Em suma, trata-se de um livro de crítica ao socialismo realmente existente. Mas sua crítica tem, a meu ver, um caráter progressista, i.e. não reacionário. Reconhece as falhas de um modelo que fracassou, o que não invalida o ideal de mudança, para melhor, da ordem social. O livro consiste, na realidade, numa defesa dos valores da verdadeira democracia, de afirmação dos direitos do indivíduo frente a um estado onipresente, comandado por uma burocracia privilegiada, indiferente às vicissitudes da maioria da população.