“HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA”
É
sabido que na obra literária forma e conteúdo compõem um todo inseparável. O
artista da palavra, ao criar um conteúdo, está ao mesmo tempo criando a forma
que melhor o expressa. No caso desse livro de Saramago, publicado pela primeira vez em 1987, a forma encontrada
destaca-se pela sua originalidade e salienta muito bem as questões que levanta
para a reflexão do leitor. Que se depara
com uma técnica narrativa inovadora e uma linguagem cativante, apesar dos
tropeços na leitura devidos não só ao português de Portugal mas também às suas
ressonâncias medievais...
O
autor narra duas histórias simultaneamente. A primeira é a de Raimundo Silva,
que trabalha há muitos anos para uma editora e acaba de revisar um livro relativo
ao cerco de Lisboa, quando a cidade estava em poder dos mouros e foi reconquistada
pelos portugueses com auxílio dos cavaleiros cruzados. Mas o veterano revisor
decide, intencionalmente, alterar uma palavra do texto original, substituir um sim por um não, de modo a negar o apoio dos
cruzados à reconquista da cidade. Esse ato, aparentemente gratuito, está
na base de todo o desenvolvimento futuro da trama e define, a meu ver, o
significado maior da obra...
Raimundo
não será demitido da empresa em que trabalha por causa dele. E atrairá a
atenção da chefe dos revisores, cargo recém criado na editora, certamente para
evitar que novas falhas desse tipo ocorram no futuro. Ela se chama Maria Sara,
e os dois acabarão por se envolver amorosamente, mais por iniciativa dela, haja
vista os receios e retraimento desse homem de meia idade que, apesar de atraído
por ela, tem dificuldade de expressar seu sentimento.
A
outra história narrada no livro é a do cerco de Lisboa excluindo a ajuda dos
cruzados à sua reconquista, que Raimundo passa a escrever, por sugestão da arguta
Maria Sara, de forma bem realista, sem triunfalismo. É uma história coerente
com a alteração que fez na obra historiográfica cuja revisão esteve a seu
encargo. Assim, o livro de Saramago narra essa outra história em processo de
elaboração, paralelamente à da vida monótona do revisor, vida essa que vai
ganhando cor à medida que evolui o seu caso de amor com Maria Sara.
A
primeira história progride mas em certo momento é substituída pela segunda. Logo
adiante, porém, a primeira é retomada. E assim o livro prossegue até o final,
intercambiando-se as histórias. A ação da obra passa-se portanto em dois tempos
e dois espaços: o nosso próprio tempo e o de 1147, o espaço da Lisboa contemporânea
e o da cidade no passado. Em 1147
Portugal está nos primórdios de sua história. Ainda reinava seu primeiro rei,
D. Afonso Henriques, aliás comandante das tropas que estão sitiando Lisboa (ele
vem de uma outra reconquista, a de Santarem). Quanto ao espaço, a obra oscila entre a Lisboa
contemporânea de Raimundo Silva, e suas inúmeras referências a determinados
locais da cidade de importância histórica, àquela outra Lisboa, a dos mouros
sitiados, que integravam uma grande população residente dentro de suas muralhas.
Essas
historias são contadas numa forma peculiar, de longos parágrafos, às vezes de
quase uma página, em que as frases se sucedem, reconhecíveis pelas letras
maiúsculas após vírgulas e não pontos. Nesses parágrafos estão embutidos os
diálogos dos personagens.
No
texto está muito presente a ironia, o humor refinado e o gosto pela língua em
que é escrito, cujas características são exploradas, às vezes ludicamente. É
uma escrita muito consciente da própria linguagem, que saboreia as
peculiaridades do nosso idioma, e faz uso frequente dos ditados populares
e das expressões consagradas.
Mas
o que dá sentido à obra, na minha opinião, é aquela substituição do sim pelo não referida acima. Ao fazer isso o revisor sai de sua passividade,
exercida ao longo de muitos anos pelo correto desempenho de suas funções. Ousa
intervir no mundo, e assumir as consequências de seu ato.
Raimundo,
significativamente, contentara-se em ser um mero revisor, quando já tinha
demonstrado qualidades de escritor em textos antigos, descobertos por Maria
Sara nos arquivos da editora. Ele optou por ser apenas revisor para recolher-se
à sua passividade, refugiar-se na sua rotina cômoda, e não se comprometer como é
exigido dos escritores. Mas Maria Sara, que compreende bem a sua personalidade (escondida por
trás de seu formalismo e retraimento) e a motivação de seu ato, sabe que ele vive
na realidade aquém de si mesmo. Sugere assim que ele escreva a sua versão da
história do cerco de Lisboa, que contradiz a versão consagrada, projeto que ele
enfim abraçará.
Saramago, ao fazer seu personagem
explorar a hipótese-- e se não houvesse a participação dos cruzados, como seria
relatado esse evento histórico? – entra no domínio da ficção. O
livro que Raimundo escreve não é, assim, apenas de reconstituição histórica; é
também literário, ficcional, o que fica bem evidente, por exemplo, na relação
imaginada do soldado Mogueime com Ouroana, a ex-barregã de um cavaleiro cruzado
morto em combate, com quem Raimundo e Maria Sara se identificam (a propósito, cabem
aqui duas observações: 1) como se vê pela afirmação que acabei de fazer, o
livro de Raimundo não exclui totalmente a participação dos cruzados no cerco de
Lisboa; 2) a palavra “barregã” é uma das muitas presentes no livro que exigem
do leitor contemporâneo e/ou brasileiro a consulta ao dicionário).
A
elaboração desse livro de Raimundo dá a Saramago a oportunidade de levantar
questões interessantes sobre a natureza da história e da ficção. Mostra os
possíveis caminhos da narrativa, faz seu personagem optar por um deles,
possibilita ao leitor participar da criação literária... Proporciona também um
distanciamento crítico com relação à historiografia, haja vista as incertezas que naturalmente envolvem
um fato histórico tão remoto quanto aquele sobre o qual se debruça Raimundo,
baseado em fontes medievais (crônica de Osberno e depoimento de D.Afonso
Henriques— cf. a respeito o interessante ensaio contido em http://www.passenaufrgs.com.br/dicas/literatura/historia-do-cerco-de-lisboa-jose-saramago-resumo.pdf
sobre a influência desses textos medievais na escrita do romance).
O
livro de Saramago, ao mostrar um ato aparentemente gratuito do revisor Raimundo
Silva (mas que na realidade é simbólico) faz um elogio ao anticonformismo do ser
humano na vida social, que está obrigado moralmente a exercer um papel ativo na
sociedade em que vive.
Ao
explorar esse “não” questionador a uma afirmação geralmente aceita pelos
historiadores, o livro contém uma alternativa verossímil a ela, ao enveredar
pelo terreno da ficção. Isso não é de estranhar pois um pressuposto da obra,
como chega a dizer Raimundo Silva logo no início dela, é que a história é também
literatura...