ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE “KARL MARX UMA BIOGRAFIA”, DE JOSÉ PAULO NETTO (BOITEMPO, 2020)
- Assim, essa biografia não deixa de contemplar a atuação prática de KM, e de seu amigo e colaborador Friedrich Engels (1820-1895), junto aos trabalhadores, participando de suas lutas. Depois do fracasso das revoluções de 1848-1849 no continente europeu, KM, com pouco mais de 30 anos, teve que se exilar na Inglaterra, onde residiria até morrer, aos 65 anos incompletos. Simultaneamente às suas atividades intelectuais e ao exercício do jornalismo, sempre comprometido com as causas dos trabalhadores, empenhou-se em sua organização, o que culminou com a criação, em 1864, da Associação Internacional dos Trabalhadores (a Ia. Internacional), sediada em Londres, da qual foi o dirigente desde aquele ano até 1872, quando sua sede passou a ser Nova York (a Associação seria extinta formalmente em 1876).
- Todavia, é inegável que o livro de J.P Netto dá mais ênfase à biografia intelectual de KM, e nisso consiste, a meu ver, o seu maior atrativo: apresenta a evolução do pensamento de Marx, desde a sua formação filosófica hegeliana, que ele dialeticamente aceitou/rejeitou/superou, substituindo o ponto de vista idealista pelo materialista. De posse de um método totalizante, analisou a experiência histórica da humanidade, na qual distinguiu diversos tipos de sociedade, correspondentes a vários modos de produção: asiático/da antiguidade/feudal/capitalista. Coube-lhe, naturalmente, concentrar-se nesse último tipo, o da sociedade burguesa, avaliada em suas diversas instâncias (econômica/ social/ política/ ideológica), pois era a sociedade de seu tempo (e continua sendo a do nosso, daí a relevância de seu pensamento, referida por Sartre). Voltou-se especialmente para a base de tal sociedade, objeto da economia política, concentrando-se na crítica dessa disciplina, condicionada que é pelo viés da burguesia (pois “as ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes”, como afirmou em “A Ideologia Alemã”). Tal crítica é formulada sob a óptica da classe trabalhadora, aquela que de fato gera o valor, apropriado, em sua maior parte, pelo dono do capital (“mais-valia”), e que consiste na essência da exploração capitalista. Desse modo, a biografia fixa-se em alguns momentos cruciais da evolução do pensamento de KM, apresentando o conteúdo essencial das obras representativas desses momentos produzidas por Marx, que sempre contou com a colaboração valiosa de Engels. O livro faz uma breve análise dessas obras, destacando seus aspectos inovadores e referindo-se às polêmicas que causaram. Mostra assim a trajetória do pensamento marxiano até chegar à sua maturidade refletida em “O Capital”, Livro I, publicado em 1867.
-O livro indica também uma bibliografia rica e atualizada, comentada pelo autor, sobre os diversos temas abordados, refletindo o “estado da arte” do seu debate. J.P.Netto é dotado de excelente didática, tendo exercido o magistério por muitos anos (é professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro). Suas 205 páginas de notas, além das 70 da bibliografia, são preciosas, pois consistem num excelente guia de leitura para quem pretenda se aprofundar nos temas em questão, tanto no mundo acadêmico como fora dele. Tal guia chega a incorporar inclusive publicações sobre temas novos, como o das limitações dos recursos naturais do planeta face à expansão constante do capitalismo, não prevista por Marx (aliás, como diz o autor, a obra do pensador alemão é indispensável mas não suficiente para a compreensão do capitalismo no século XXI...).
- Quanto à vida privada ou familiar de Marx, J.P.Netto dá a voz, frequentemente, a Mary Gabriel que a aborda em seu livro “Amor & Capital”, retratando a vida, as dificuldades e alegrias do casal Karl e Jenny, e suas três filhas Jenny, Laura e Eleanor. A esposa de Marx, filha da aristocracia prussiana e 4 anos mais velha que ele, era uma mulher evoluída que não se impediu, por preconceito, de rejeitar o amor desse filho de um advogado judeu. Quanto às filhas, Jenny casou-se com Paul Lafargue e Laura com Charles Longuet, ambos militantes socialistas.
- Engels foi o amigo de toda a vida e colaborador intelectual constante de Marx. Era praticamente da família, dada a íntima convivência com seus membros. Sendo rico, filho de industrial sediado em Manchester (no coração da Revolução Industrial, de papel relevante nos primórdios do capitalismo) ajudou financeiramente Marx durante um bom tempo da vida deste, cuja renda obtida pela contribuição a alguns jornais não era suficiente para manter a família. Engels sobreviveu a Marx por 12 anos, cabendo-lhe editar os livros II e III de “O Capital”, que seu autor deixara incompleto. O trabalho dele quanto ao livro III foi muito maior, levando J.P.Netto a referir-se a Engels como seu “verdadeiro coautor”). Também aqui revelou a sua grande generosidade, ao dedicar-se a essa tarefa árdua durante muitos anos (o livro II foi publicado em 1885 mas o livro III só em 1894). Engels relacionou-se afetivamente com uma irlandesa da classe operária. Após a morte desta, uniu-se à sua irmã.
- Para concluir, vale transcrever este
comentário de José Paulo Netto (p.491-2), sobre o seu biografado: “o
seu legado teórico e político (...) manteve-se e mantém-se vivo. Inscreveu-se
durável e irreversivelmente na história, na cultura e na contemporaneidade
(...). O legado de Marx resistiu e se revigorou ao longo de mais de cem anos de
sistemática desqualificação pelas burguesias e seus representantes, e
igualmente a pelo menos cinco décadas de deformação – durante as quais até
crimes foram cometidos em seu nome – por ideólogos que o converteram em
doutrina oficial da maioria das “sociedades pós-revolucionárias” (assim
caracterizadas por Mészáros)”. Quanto ao revigoramento do legado de Marx, J.P.Netto
refere-se, na p. 491, à matéria de “um
órgão da comunicação social burguesa”, o “New York Times” que afirmou
em sua edição de 27 de junho de 1998: “o
patrimônio de Marx ressurge depois de 150 anos”. Menciona também “outro órgão da mesma estirpe”, “The
Times”, de 20 de outubro de 2008, que exclamou, durante a crise do capitalismo irrompida
em 2008, a propósito de Marx: “Ele voltou!”.
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