SOBRE "CRIME E CASTIGO"
Em S.Petersburgo, na Rússia czarista do século XIX , um ex-estudante de Direito pobre, de 23 anos, que vive de uma parca mesada enviada pela mãe e irmã, assassina com uma machadinha uma velha usurária, e também casualmente a irmã dela, que surge de repente no local. Esse é o crime do título do livro, apresentado logo no começo do romance, o qual se estenderá por muitas páginas que se voltam para os efeitos que tal ato, aparentemente gratuito, produz sobre a mente e o corpo de Raskólnikov, o assassino.
Ele é um
intelectual, que algum tempo antes publicara um artigo com suas ideias
peculiares a respeito do crime num jornal local. Considera-o aceitável, quando
necessário para a superação de obstáculos à atuação de homens extraordinários.
Seria permitido, por exemplo, a Newton ou a Napoleão, para que o primeiro
pudesse afirmar suas ideias inovadoras sobre o mundo ou o segundo, desenvolver
sua estratégia militar. Enquanto o crime seria proibido para os seres humanos
comuns (a maioria), seria permitido para os extraordinários. Ele não
acredita assim numa condenação absoluta do crime, como faz a religião, mas
considera-o permitido a algumas pessoas em determinadas circunstâncias.
Raskólnikov não se arrepende de seu
crime, pois acredita que um “piolho” como a velhota usurária deveria ser
eliminado em nome do progresso social. Sua má ação significaria muitas boas
ações, ou seja, significaria ajudar aos seus familiares, e a ele próprio, com o
produto do roubo. Mas após o assassínio ser cometido por uma determinação
intelectual, ele não consegue controlar suas reações emotivas. Apressa-se em
esconder o produto do roubo, não o utilizando assim para o fim a que se
destinava (ele nem mesmo se dá conta de quanto roubou da usurária, a quem
recorrera várias vezes antes do crime, penhorando seus poucos bens por um valor
excessivamente rebaixado).
Raskólnikov descobre que não é uma pessoa
extraordinária. Ele é profundamente abalado pelo cometimento do crime, e
encontra nisso o seu real castigo. Ele gostaria de ter a indiferença de
Napoleão perante os inúmeros crimes que cometeu...
O romance nos faz pensar que as máximas
morais, de fato, não são absolutas, diferentemente do que pregam as religiões.
“Não matarás!”, “não furtarás” etc. são máximas que dependem das circunstâncias
de tempo e lugar. Será que o assassínio de Hitler, naquela conjuntura histórica
de sua ascensão ao poder, não encontraria sua justificativa em termos éticos?
Tratava-se de uma ação má que implicaria em muitas ações boas, ou seja,
salvaria a vida de milhões de pessoas, vítimas da II Guerra, além naturalmente
dos judeus...
Dostoiévski prende a nossa atenção o
tempo todo com a sua hábil narrativa. As histórias vão se sucedendo
paralelamente ao seu eixo principal, concernente a Raskólnikov. Assim,
somos apresentados ao drama dos outros personagens, destacando-se aqui o de
Marmeládov, alcoólatra, de sua esposa Ekatierina, tísica, e da filha Sônia,
obrigada a se prostituir para ajudar a família e dar de comer aos irmãos
menores. Há também o juiz de instrução Porfíri Pietróvitch, que em seus
diálogos frequentes com Raskólnikov, exerce uma sutil pressão psicológica sobre
ele, agravando as suas tensões interiores de homem não-extraordinário, que
acabarão por fazê-lo confessar o crime.
No final, Sônia acompanhará Raskólnikov à
Sibéria, onde este cumprirá sua pena de 8 anos de trabalhos forçados, pena essa
que foi reduzida por terem sido levados em conta, no processo, vários
atenuantes. Ao longo do romance é citada uma passagem dos Evangelhos, a da
ressurreição de Lázaro, que adquire um valor simbólico no desfecho da
narrativa, quando Raskólnikov reconhece enfim em si seu amor pela devotada
Sônia, ex-prostituta, ressurgindo assim para uma nova vida com ela, antevista
no futuro, após alguns anos, quando ele cumprir
a pena. Esse desfecho mostra que o protagonista rende-se à religiosidade de
Sônia e reflete também a visão de mundo de Dostoiévski.
Sônia pode acompanhar Raskólikov à
Sibéria porque recebeu um auxílio financeiro de Svidrigáilov. Este -- protagonista
de outro drama, paralelo ao do jovem assassino -- é um viúvo, jogador e
libertino, apaixonado pela irmã de Raskólnikov, que no passado trabalhou em sua
casa como preceptora. Mas Dúnia não quer saber dele. Rechaçado por ela, sem
nenhuma esperança de conquistá-la, acaba se suicidando. Antes disso, porém,
distribui seu dinheiro em favor de várias pessoas, além de encaminhar a uma
instituição adequada os irmãos menores de Sônia... Assim, o libertino
revela sua índole boa, evidenciando a ambiguidade deste personagem, como também
ocorre com outros...
Para concluir, um alerta aos leitores. A
edição de “Crime e Castigo” que li, da L&PM, lançada em 2010,
contém muitos erros de revisão. Isso às vezes prejudica o prazer da leitura
desse notável romance, publicado pela primeira vez em 1866.
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