Esse é o título do livro mais recente de Otto Leopoldo Winck (Kotter Editorial, 2019) que agrada ao leitor não só pela qualidade literária do texto mas também por ser o retrato de uma geração, nascida no meio do século XX, e de uma cidade, no caso Curitiba, especialmente a dos anos 60. Agradará mais ainda aqueles que, como eu, são da mesma geração dos dois protagonistas, e são curitibanos, natos ou por adoção, que viveram esse período na cidade.
A prosa é fluente, coloquial, despojada, e mantém
sempre o interesse do leitor. Tem um caráter predominantemente memorialista. Em
alguns momentos a prosa vira poesia da melhor qualidade. A técnica empregada na
feitura do romance é bem moderna, provocando sempre o distanciamento crítico do
leitor, pois lembra-o frequentemente do processe de elaboração do romance que
tem em mãos.
Há no texto inúmeras citações ocultas,
sem indicação de autoria, sobretudo literárias ou de letras de música, que os
mais familiarizados nessas áreas identificarão com facilidade. Há também outras
citações, de caráter político, como quando se enumeram aquelas relativas à revolução
ou extraídas do livrinho vermelho de Mao, o que bem reflete o estado de
espírito daqueles jovens intelectuais idealistas que queriam transformar o
mundo, candidatos a escritores, cujo maior interesse se concentrava em
literatura, música e política. Além das garotas, naturalmente.
O leitor fica interessado no
desenrolar da história de Ruy (que é o narrador nas duas primeiras partes
do romance), e seus amigos, principalmente Adrian, admirado por ele, colega de
escola no ensino médio. Esse seu melhor amigo, com o mesmo gosto por aquelas
áreas, embora mais radical em política, é membro de uma família economicamente superior
à de Ruy, cujo pai é dono de um pequeno armazém na cidadezinha do interior do
Paraná em que vivem. Ambos se mudam para a capital, a fim de prosseguirem os
estudos.
Em Curitiba, Ruy, Adrian e sua
namorada Elisa, iniciam a vida universitária, participando ativamente do movimento
estudantil. Envolvem-se na luta contra o ensino pago que a ditadura tentou implantar
na Universidade Federal (um curso de Engenharia noturno) e nos protestos junto
ao prédio da Reitoria, que culminaram com a derrubada do busto do reitor Flávio
Suplicy.
. Após o AI-5, em dezembro de 1968, ocorre
o endurecimento do regime, reprimindo-se a livre manifestação do pensamento e outros
direitos do cidadão. Fecha-se assim todo o espaço para a oposição democrática,
o que leva uma parcela dos estudantes, os mais inconformados, a caírem na
clandestinidade e a optarem pela luta armada contra a ditadura. Esse é o caso
de Adrian, que assim deixa de conviver com Ruy, o qual como tantos outros --
menos idealistas ou não tão ingênuos -- não fazem tal opção, permanecendo, é
claro, na oposição ao regime. Ruy passa a trabalhar em jornal, iniciando aí uma
longa carreira.
Dentre suas amizades femininas, destacam-se
Elisa, Vera, Clarinha e Joana. Elisa é a mais inteligente e politizada. Com Vera ele inicia, de fato, sua vida sexual
(não conta a Casa -de tolerância- da Filó, lá do interior). Ela o leva para um
baile no Clube Curitibano e ele vê que não tem a nada ver com aquele círculo
social, representado pelo pai de Vera, que pensa muito diferente dele. Claudinha
é a irmã de Adrian, que ficou no interior, e não revelou o seu amor. Joana é
casada com o irmão de Adrian. Ela dá em cima de Ruy, que acaba se tornando seu
amante. Um dia, o marido os surpreende nus na cama. Aqui ocorre uma pequena
frustração do leitor curioso: o tópico se encerra sem contar o que aconteceu na
sequência (a curiosidade é aumentada pelo
fato de que Joana estava grávida de Ruy)...
O livro traz inúmeras referências
típicas da cidade nos anos 60, não só a seus bares, mas às lojas comerciais,
cinemas, livrarias, prédios, praças (com suas hermas e estátuas), galerias, bairros,
rios e arroios, Vagão do Armistício “do pai do Poty”, farmácia Stelfeld “e seu
relógio de Sol”, etc Também são citados escritores, outras personalidades, e tipos
populares da cidade. Essas longas referências, ou enumerações, nos transportam
para a Curitiba da época, ajudando a bem caracterizá-la. Também ocorrem no
plano da linguagem, como o rol de gírias e expressões, de sinônimos de maconha, de estilingue etc
Na terceira e última parte do
livro, o narrador é outro, pois Ruy é tratado na terceira pessoa. Aborda o reencontro, na
época atual, dos dois amigos, já quase septuagenários, no bar Stuart, o mais
antigo de Curitiba, situado no centro da cidade, na praça Osório.
Nesse reencontro rememoram os anos de
juventude. Ruy é agora um jornalista
aposentado, desencantado com a profissão, que o obrigou a sacrificar a literatura pelo exercício de
uma atividade utilitária e até mesmo mercenária. Adrian, por outro lado, tornou-se
um empresário do ramo da construção civil e mora em São Paulo. Durante a longa
conversa, consomem muito chopp e “carne de onça”, um prato típico local, cuja
receita é descrita no livro. Anteriormente, já fora citado o famoso sanduíche
de pernil do bar Triângulo, na rua XV. Esses registros das peculiaridades de
Curitiba, juntamente a muitas outras, em todas as áreas, ajudam a compor o
retrato da “alma da cidade”.
Ruy verifica, desapontado, que Adrian
é agora um conservador, politicamente desiludido, um cético e epicurista,
repudiando aqueles tempos de rebeldia política, cujas consequências ele sofreu
na carne, pois foi preso, torturado e chegou a cumprir uma pena de alguns
anos. Depois, “desbundou”, como se
dizia, acreditando que antes de mudar as estruturas é necessário mudar o ser
humano. Ruy percebe que há agora uma distância enorme entre eles.
Essa é a sinopse do romance escrito
por Ruy, e complementado por seu professor na oficina literária em que se
inscreveu depois de aposentado. Está datado assim: 11 de março- 15 de novembro
de 2017.
Segue-se um texto adicional, escrito por tal professor. Verificamos
então que o romance é, na realidade, resultado do seu trabalho nessa oficina. O
professor gosta do livro e decide publicá-lo, mas encontra resistência da
família de Ruy, que o processaria se publicasse algo que a comprometesse. Assim,
o professor, que conclui de fato o livro de Ruy, acaba assumindo a sua autoria.
Ele se autoidentifica: trata-se do próprio Otto Leopoldo Winck
O volume é concluído com um apêndice,
que transcreve uma matéria sobre os hippies escrita por Ruy, então jornalista
iniciante, e publicada num jornal local, em 1968. Ela contém uma entrevista com
seu amigo Grillo Flowers.
O título do livro-- “Que fim levaram todas as flores”-- que bem expressa o desapontamento daqueles que
foram jovens sonhadores um dia, deriva da letra de uma canção dos “Secos e
Molhados, mais uma das inúmeras referências, nesse caso musical, que recriam,
habilmente, o espírito daquela época. Com o mesmo objetivo, muitas referências
são feitas ainda ao rock internacional e suas obras mais notáveis.
O romance que lemos é, como disse, o
resultado do trabalho em uma oficina literária. Esse fato nos remete a uma
outra importante característica da obra: a ênfase no processo de sua própria
elaboração, indicada em inúmeras ocasiões. Por exemplo, quando Ruy diz a
Adrian, no Bar Stuart, que está escrevendo um romance memorialístico, que ele
será um de seus personagens e que aquele reencontro mesmo poderia fazer parte
do livro. Outro exemplo é dado pela passagem em que o narrador revela suas dúvidas
sobre a melhor expressão a ser empregada, e apresenta várias possibilidades.
Outro ainda, quando se afirma que os dois velhos, no Stuart, talvez já
estivessem na terceira fase da bebedeira. E no texto consta, entre parênteses:
“(Não sei se suspiraram, o narrador não
percebeu”).
Constata-se ademais breves (e frequentes)
interrupções da história para se indicar
o significado de certas palavras utilizadas, arrolando-se inclusive seus
sinônimos (por exemplo, o rol dos sinônimos de maconha, que enche meia página).
Percebe-se aqui uma aparente gratuidade no procedimento. Mas este se justifica pois
evidencia a riqueza do nosso léxico, pela apresentação das muitas
possibilidades a serem exploradas, o que é totalmente adequado num romance que
pretende enfatizar o seu próprio processo de elaboração.
Desse modo, a técnica literária
empregada nesse livro é bem moderna, tornando o leitor sempre consciente de tal
processo. Isso ocorre também com relação
ao cinema. Lembro de um dos filmes de Godard
(mais uma referência típica da época) em que aparecia um letreiro com os
dizeres: “un filme en train de se faire”.
O texto principal é composto de
pequenos segmentos, separados por três asteriscos, e avança conforme evolui a
narrativa. Mas em certas ocasiões esses
minicapítulos podem ser inteiramente tomados, como se viu acima, pela
enumeração de aspectos típicos de Curitiba. Também podem tratar de outros
assuntos como por exemplo, na terceira parte, sobre o livro do Zohar, certamente
motivado pelo interesse atual do velho Adrian na “cabala autêntica” para reatar
suas raízes judias. Esse minicapítulo aborda o papel exercido pelas letras, que
são tratadas no Zohar de modo personalizado. Elas já existiam antes da criação
do mundo pelo Altíssimo e quem ocupa a primazia é o Aleph. Num romance voltado
para a sua própria elaboração, tratar das letras também parece ser bem
conveniente...
Cabe por fim ressaltar a presença de
algumas passagens, em que a prosa de Otto vira poesia de alta qualidade, quando
afirma pela boca de Ruy:
--“Enquanto
isso, lá no alto, a lua, apática testemunha, era uma foice de prata num campo
de estrelas /.../ ” (p. 206)
Ou quando o jovem Ruy escreve em um de
seus cadernos, imbuído do existencialismo sartreano:
--“No
fundo, o desamparo é a nossa maior herança. Nascemos sós, morreremos sós.
Bastardos, trânsfugas, párias, não sabemos para onde vamos, não sabemos sequer
por onde vamos. Impossível se fazer entender, tentar explicar, articular
qualquer palavra coerente. Ninguém nos ouviria: nem entre os anjos, nem entre
os homens. Aliás, não há em lugar algum alguém velando por nós, alguém zelando
por nossos passos, pronto a nos socorrer em caso de queda ou pânico. Se, ao sairmos de
casa, alguém ainda nos acenava, não há a menor garantia de que, ao regressarmos
um dia, ainda esteja lá nos esperando. O jeito é estender a mão e tocar os
outros que, igualmente desamparados, igualmente extraviados, vagam ao nosso
lado. E quem sabe assim, de braços dados, tentar chegarmos juntos a um lugar
seguro”. (p. 223-4)
Ou quando o velho Ruy fala, e se sente
a presença oculta de Dalton Trevisan, Heráclito e Proust:
--“Não
adianta partir em busca de Curitiba perdida. Não existe uma Curitiba perdida.
Existem muitas. Já no meu tempo, as pessoas que hoje têm a minha idade, já
reclamavam que não encontravam mais sua velha Curitiba. Nunca encontrariam.
Nunca encontraremos. A Curitiba por ventura encontrada hoje é a Curitiba
perdida amanhã. Como tudo. Nada volta do rio do tempo. Nem as águas, que são
sempre outras. Nem as lágrimas, que são sempre poucas. E a memória, tão parca,
tão frágil, tão pobre, não tem o condão de recuperar o tempo perdido. Nem a
literatura, coitada, essa senhora tão pretenciosa. Este livro não é uma
tentativa de recuperação de nada. Não é uma tentativa de salvação de nada. Este
livro é só um testemunho, afônico, agônico, de que tudo passa: as amizades, as
lutas, os medos, os sonhos”. (p. 239)
Arrasou vovô
ResponderExcluirObrigado, Gabriela.
ExcluirComentário de Otto Leopoldo Winck no Facebook: "Salve, Domingos! Obrigado pela resenha. Você lançou um olhar bem atento e amplo: abordou não só o tema mas como ele vem trabalhado. Que bom que gostou do livro. Uma das melhores resenhas até agora sobre o livro".
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