sexta-feira, 15 de maio de 2020

"QUE FIM LEVARAM TODAS AS FLORES"


                                                                

           Esse é o título do livro mais recente de Otto Leopoldo Winck (Kotter Editorial, 2019) que agrada ao leitor não só pela qualidade literária do texto mas também por ser o retrato de uma geração,  nascida no meio do século XX,  e de uma cidade, no caso  Curitiba, especialmente a dos anos 60. Agradará mais ainda aqueles que, como eu, são da mesma geração dos dois protagonistas, e são curitibanos, natos ou por adoção, que viveram esse período na cidade.  

 A prosa é fluente, coloquial, despojada, e mantém sempre o interesse do leitor. Tem um caráter predominantemente memorialista. Em alguns momentos a prosa vira poesia da melhor qualidade. A técnica empregada na feitura do romance é bem moderna, provocando sempre o distanciamento crítico do leitor, pois lembra-o frequentemente do processe de elaboração do romance que tem em mãos.

Há no texto inúmeras citações ocultas, sem indicação de autoria, sobretudo literárias ou de letras de música, que os mais familiarizados nessas áreas identificarão com facilidade. Há também outras citações, de caráter político, como quando se enumeram aquelas relativas à revolução ou extraídas do livrinho vermelho de Mao, o que bem reflete o estado de espírito daqueles jovens intelectuais idealistas que queriam transformar o mundo, candidatos a escritores, cujo maior interesse se concentrava em literatura, música e política. Além das garotas, naturalmente.       

O leitor fica interessado no desenrolar da história de Ruy (que é o narrador nas duas primeiras partes do romance), e seus amigos, principalmente Adrian, admirado por ele, colega de escola no ensino médio. Esse seu melhor amigo, com o mesmo gosto por aquelas áreas, embora mais radical em política, é membro de uma família economicamente superior à de Ruy, cujo pai é dono de um pequeno armazém na cidadezinha do interior do Paraná em que vivem. Ambos se mudam para a capital, a fim de prosseguirem os estudos.

Em Curitiba, Ruy, Adrian e sua namorada Elisa, iniciam a vida universitária, participando ativamente do movimento estudantil. Envolvem-se na luta contra o ensino pago que a ditadura tentou implantar na Universidade Federal (um curso de Engenharia noturno) e nos protestos junto ao prédio da Reitoria, que culminaram com a derrubada do busto do reitor Flávio Suplicy.

. Após o AI-5, em dezembro de 1968, ocorre o endurecimento do regime, reprimindo-se a livre manifestação do pensamento e outros direitos do cidadão. Fecha-se assim todo o espaço para a oposição democrática, o que leva uma parcela dos estudantes, os mais inconformados, a caírem na clandestinidade e a optarem pela luta armada contra a ditadura. Esse é o caso de Adrian, que assim deixa de conviver com Ruy, o qual como tantos outros -- menos idealistas ou não tão ingênuos -- não fazem tal opção, permanecendo, é claro, na oposição ao regime. Ruy passa a trabalhar em jornal, iniciando aí uma longa carreira.   

Dentre suas amizades femininas, destacam-se Elisa, Vera, Clarinha e Joana. Elisa é a mais inteligente e politizada.  Com Vera ele inicia, de fato, sua vida sexual (não conta a Casa -de tolerância- da Filó, lá do interior). Ela o leva para um baile no Clube Curitibano e ele vê que não tem a nada ver com aquele círculo social, representado pelo pai de Vera, que pensa muito diferente dele. Claudinha é a irmã de Adrian, que ficou no interior, e não revelou o seu amor. Joana é casada com o irmão de Adrian. Ela dá em cima de Ruy, que acaba se tornando seu amante. Um dia, o marido os surpreende nus na cama. Aqui ocorre uma pequena frustração do leitor curioso: o tópico se encerra sem contar o que aconteceu na sequência  (a curiosidade é aumentada pelo fato de que Joana estava grávida de Ruy)...

            O livro traz inúmeras referências típicas da cidade nos anos 60, não só a seus bares, mas às lojas comerciais, cinemas, livrarias, prédios, praças (com suas hermas e estátuas), galerias, bairros, rios e arroios, Vagão do Armistício “do pai do Poty”, farmácia Stelfeld “e seu relógio de Sol”, etc Também são citados escritores, outras personalidades, e tipos populares da cidade. Essas longas referências, ou enumerações, nos transportam para a Curitiba da época, ajudando a bem caracterizá-la. Também ocorrem no plano da linguagem, como o rol de gírias e expressões, de sinônimos de maconha, de estilingue etc 

Na terceira e última parte do livro, o narrador é outro, pois Ruy é tratado  na terceira pessoa. Aborda o reencontro, na época atual, dos dois amigos, já quase septuagenários, no bar Stuart, o mais antigo de Curitiba, situado no centro da cidade, na praça Osório.
           
Nesse reencontro rememoram os anos de juventude.  Ruy é agora um jornalista aposentado, desencantado com a profissão, que o obrigou  a sacrificar a literatura pelo exercício de uma atividade utilitária e até mesmo mercenária. Adrian, por outro lado, tornou-se um empresário do ramo da construção civil e mora em São Paulo. Durante a longa conversa, consomem muito chopp e “carne de onça”, um prato típico local, cuja receita é descrita no livro. Anteriormente, já fora citado o famoso sanduíche de pernil do bar Triângulo, na rua XV. Esses registros das peculiaridades de Curitiba, juntamente a muitas outras, em todas as áreas, ajudam a compor o retrato da “alma da cidade”.    

Ruy verifica, desapontado, que Adrian é agora um conservador, politicamente desiludido, um cético e epicurista, repudiando aqueles tempos de rebeldia política, cujas consequências ele sofreu na carne, pois foi preso, torturado e chegou a cumprir uma pena de alguns anos.  Depois, “desbundou”, como se dizia, acreditando que antes de mudar as estruturas é necessário mudar o ser humano. Ruy percebe que há agora uma distância enorme entre eles.

Essa é a sinopse do romance escrito por Ruy, e complementado por seu professor na oficina literária em que se inscreveu depois de aposentado. Está   datado assim: 11 de março- 15 de novembro de  2017.

Segue-se um texto adicional, escrito por tal professor. Verificamos então que o romance é, na realidade, resultado do seu trabalho nessa oficina. O professor gosta do livro e decide publicá-lo, mas encontra resistência da família de Ruy, que o processaria se publicasse algo que a comprometesse. Assim, o professor, que conclui de fato o livro de Ruy, acaba assumindo a sua autoria. Ele se autoidentifica: trata-se do próprio Otto Leopoldo Winck

O volume é concluído com um apêndice, que transcreve uma matéria sobre os hippies escrita por Ruy, então jornalista iniciante, e publicada num jornal local, em 1968. Ela contém uma entrevista com seu amigo Grillo Flowers.  

O título do livro-- “Que fim levaram todas as flores”--  que bem expressa o desapontamento daqueles que foram jovens sonhadores um dia, deriva da letra de uma canção dos “Secos e Molhados, mais uma das inúmeras referências, nesse caso musical, que recriam, habilmente, o espírito daquela época. Com o mesmo objetivo, muitas referências são feitas ainda ao rock internacional e suas obras mais notáveis.

O romance que lemos é, como disse, o resultado do trabalho em uma oficina literária. Esse fato nos remete a uma outra importante característica da obra: a ênfase no processo de sua própria elaboração, indicada em inúmeras ocasiões. Por exemplo, quando Ruy diz a Adrian, no Bar Stuart, que está escrevendo um romance memorialístico, que ele será um de seus personagens e que aquele reencontro mesmo poderia fazer parte do livro. Outro exemplo é dado pela passagem em que o narrador revela suas dúvidas sobre a melhor expressão a ser empregada, e apresenta várias possibilidades. Outro ainda, quando se afirma que os dois velhos, no Stuart, talvez já estivessem na terceira fase da bebedeira. E no texto consta, entre parênteses: “(Não sei se suspiraram, o narrador não percebeu”).

Constata-se ademais breves (e frequentes)  interrupções da história para se indicar o significado de certas palavras utilizadas, arrolando-se inclusive seus sinônimos (por exemplo, o rol dos sinônimos de maconha, que enche meia página). Percebe-se aqui uma aparente gratuidade no procedimento. Mas este se justifica pois evidencia a riqueza do nosso léxico, pela apresentação das muitas possibilidades a serem exploradas, o que é totalmente adequado num romance que pretende enfatizar o seu próprio processo de elaboração.  

Desse modo, a técnica literária empregada nesse livro é bem moderna, tornando o leitor sempre consciente de tal processo. Isso ocorre também  com relação ao cinema. Lembro de um dos filmes de  Godard (mais uma referência típica da época) em que aparecia um letreiro com os dizeres: “un filme en train de se faire”.

O texto principal é composto de pequenos segmentos, separados por três asteriscos, e avança conforme evolui a narrativa. Mas  em certas ocasiões esses minicapítulos podem ser inteiramente tomados, como se viu acima, pela enumeração de aspectos típicos de Curitiba. Também podem tratar de outros assuntos como por exemplo, na terceira parte, sobre o livro do Zohar, certamente motivado pelo interesse atual do velho Adrian na “cabala autêntica” para reatar suas raízes judias. Esse minicapítulo aborda o papel exercido pelas letras, que são tratadas no Zohar de modo personalizado. Elas já existiam antes da criação do mundo pelo Altíssimo e quem ocupa a primazia é o Aleph. Num romance voltado para a sua própria elaboração, tratar das letras também parece ser bem conveniente...

Cabe por fim ressaltar a presença de algumas passagens, em que a prosa de Otto vira poesia de alta qualidade, quando afirma pela boca de Ruy:

--“Enquanto isso, lá no alto, a lua, apática testemunha, era uma foice de prata num campo de estrelas /.../ ” (p. 206)

Ou quando o jovem Ruy escreve em um de seus cadernos, imbuído do existencialismo sartreano:

--“No fundo, o desamparo é a nossa maior herança. Nascemos sós, morreremos sós. Bastardos, trânsfugas, párias, não sabemos para onde vamos, não sabemos sequer por onde vamos. Impossível se fazer entender, tentar explicar, articular qualquer palavra coerente. Ninguém nos ouviria: nem entre os anjos, nem entre os homens. Aliás, não há em lugar algum alguém velando por nós, alguém zelando por nossos passos, pronto a nos socorrer  em caso de queda ou pânico. Se, ao sairmos de casa, alguém ainda nos acenava, não há a menor garantia de que, ao regressarmos um dia, ainda esteja lá nos esperando. O jeito é estender a mão e tocar os outros que, igualmente desamparados, igualmente extraviados, vagam ao nosso lado. E quem sabe assim, de braços dados, tentar chegarmos juntos a um lugar seguro”. (p. 223-4)

Ou quando o velho Ruy fala, e se sente a presença oculta de Dalton Trevisan, Heráclito e Proust:

--“Não adianta partir em busca de Curitiba perdida. Não existe uma Curitiba perdida. Existem muitas. Já no meu tempo, as pessoas que hoje têm a minha idade, já reclamavam que não encontravam mais sua velha Curitiba. Nunca encontrariam. Nunca encontraremos. A Curitiba por ventura encontrada hoje é a Curitiba perdida amanhã. Como tudo. Nada volta do rio do tempo. Nem as águas, que são sempre outras. Nem as lágrimas, que são sempre poucas. E a memória, tão parca, tão frágil, tão pobre, não tem o condão de recuperar o tempo perdido. Nem a literatura, coitada, essa senhora tão pretenciosa. Este livro não é uma tentativa de recuperação de nada. Não é uma tentativa de salvação de nada. Este livro é só um testemunho, afônico, agônico, de que tudo passa: as amizades, as lutas, os medos, os sonhos”. (p. 239)