sexta-feira, 12 de junho de 2020


LIGEIRAS OBSERVAÇÕES FEITAS APÓS UM GIRO PELA PENÍNSULA IBÉRICA

(o “giro ibérico” abrangeu 5 mil km e foi realizado de 12 a 30 de maio de 2014)

1. PORTUGAL


-A casa Fernando Pessoa, no Campo de Ourique, em Lisboa, é aquela em que o poeta morou nos seus últimos 15 anos de vida. Vai-se até lá no famoso bondinho (ou “eléctrico”) 28. A casa-museu é dedicada a cultuar a sua memória. Ali pode-se ver como era seu quarto e ali estão a escrivaninha, o baú dos inéditos, seus objetos pessoais etc Há também uma biblioteca para uso dos pesquisadores e uma livraria. Da mesma forma, a antiga Casa dos Bicos em outro ponto da cidade sedia atualmente a Fundação José Saramago, que homenageia o grande escritor português contemporâneo.

-Na estação do Rossio, perto da praça D. Pedro IV, pegamos um trem que nos levou até Queluz, onde está o palácio em que residiram D.Maria I, D.João e Carlota Joaquim, além dos filhos. Visitamos o quarto em que o nosso D. Pedro I (o D. Pedro IV deles) nasceu e veio a morrer, após ter abdicado do trono no Brasil e retornado ao seu país. É um palácio mal conservado, que não impressiona pela arquitetura, no meio de amplos jardins.

-“Rossio” é uma palavra que se vê frequentemente nos logradouros públicos das cidades. Segundo me disseram, deriva do alemão “Ross” que significa “cavalo”. Referia-se antigamente aos locais urbanos reservados ao descanso dos cavalos, meio de transporte da época.

-Em Mértola, simpática cidade do Alentejo, de ruas e prédios brancos, conversando com alguns moradores do local, eles me falaram do assassinato de um turista português ocorrido no Brasil há alguns anos. Ainda estavam impressionados com a selvageria do crime, em que o pobre turista foi obrigado a cavar a própria cova onde seria enterrado. Expliquei-lhes que, em boa medida, a nossa criminalidade é explicada pelas condições sociais, e que aqui a tensão social e a desigualdade são muito grandes. Por isso, devemos apoiar governos de esquerda, que priorizem essas questões.

-A propósito de Mértola, um fato que me chamou a atenção foi uma igreja católica, também caiada de branco, que fora antes mesquita, próxima a um castelo. O templo, internamente, ainda guarda as características arquitetônicas de sua antiga função, na época dos mouros.

- Em Évora, a sinistra Capela dos Ossos, ao lado da igreja de S. Francisco, traz a inscrição famosa: “Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos”, para nos lembrar da precariedade da condição humana. Nessa cidade, nas lojinhas para turistas abundam artigos feitos de cortiça (bolsas, malas, bonés, chapéus, carteiras etc). Nosso guia disse que Portugal é o maior produtor de cortiça do mundo (que serve também, naturalmente, para se fazerem as rolhas das garrafas de vinho, produto tradicional e notável de sua economia). Ela é extraída da casca de uma árvore chamada sobreiro, muito presente na paisagem da região (assim como as oliveiras).

-Assim como no Brasil existem piadas de português, em Portugal existem piadas de alentejano. Eles são considerados “lentos” demais... No Alentejo a paisagem é pobre, a vegetação é de um verde sujo, sem cor viva, e em muitas áreas se cria gado.

-Em Vila Viçosa, onde está o Palácio Ducal (dos duques de Bragança), a memória da poetisa portuguesa Florbela Espanca é lembrada não só no centro da pequena cidade (em que há um marco assinalando o local onde havia a casa em que ela nasceu) mas também no cemitério, onde está o seu túmulo, revestido de mármore, logo na entrada. Aqui vale uma observação crítica que tem a ver com a nossa dependência cultural anglo-saxônica: nos dois guias de Portugal que li sobre os pontos que iria visitar nessa viagem, um publicado originalmente pela DK- Dorling Kindersley e outro pela Lonely Planet -- apesar de serem muito bons e informativos -- não fizeram nenhuma referência a ela, certamente por menosprezarem seu papel na literatura portuguesa. O mesmo aconteceu com a poetisa galega Rosalía de Castro, não mencionada nos dois guias sobre a Espanha daquelas editoras, na parte relativa à região de Santiago de Compostela. Mas vi em Lugo um busto em sua homenagem. A propósito, o nome desta cidade, fundada pelos romanos e que guarda várias relíquias deles, deriva de Lucus Augusti.

-Em León vi uma casa projetada por Gaudí, a Casa de Botines, mostrando que não é só em Barcelona que há trabalhos desse arquiteto.

-Notei, ao longo da viagem em Portugal, muitas curiosidades léxicas. Por exemplo, usam a palavra rotunda em vez de rotatória, sapataria é a loja que vende sapatos, puto é sinônimo de criança, pastel de bacalhau é o que chamamos de bolinho de bacalhau, portagem é pedágio, autocar é ônibus, eléctrico é bonde, alfarrabista é sebo etc etc

- Em Fátima há, dentro de uma caixa de vidro, um pedaço do Muro de Berlim, para lembrar a profecia de uma das pastorinhas relacionada ao fim do comunismo ateu... Na área desse santuário, numa trilha lisa, pavimentada, vi várias pessoas andando apoiados não nos pés mas nos joelhos, e fazendo assim um longo percurso...

- Na cidade do Porto visitei uma famosa livraria, a Lello e Irmão, considerada uma das mais bonitas do mundo. Nosso guia nos disse que a autora do livros de Harry Potter era sua assídua frequentadora, e se inspirou nela para compor o cenário do primeiro livro da série.

- Visitei, próximo a Braga, o santuário do Bom Jesus do Monte. Chega-se a ele subindo uma longa escadaria (a concepção subjacente é a da ascensão espiritual do indivíduo). Muitas pessoas ali, de abrigo, pareciam aproveitar a ocasião para fazer o seu exercício físico rotineiro, mais preocupados com a saúde do corpo que da alma... No percurso há uma série de elementos antigos que chamam a atenção do visitante como as fontes dos Cinco Sentidos (em que a água ora sai dos olhos, ora da boca ou de outro órgão dos sentidos) e as diversas capelas, cada uma representando em seu interior uma cena da Via Sacra...

-Há um ditado que sintetiza Portugal e que registro aqui para não esquecer: “Em Lisboa as pessoas se divertem, no Porto trabalham, em Braga rezam e em Coimbra estudam”.

2. ESPANHA

-Na catedral de Santiago de Compostela há um grande incensório. Consta que ele era usado antigamente para atenuar o bodum dos peregrinos, após uma longa viagem, em que certamente eram poucas as oportunidades de se fazer a higiene pessoal... Porém mais grave que isso é a sujeira moral: no passado, a universidade local negava acesso a quem tivesse sangue mouro ou judeu. Como se vê, o racismo na Europa vem de longe...

-A siesta é um costume espanhol arraigado. Em León a loja de souvenirs só abria às 5 horas da tarde. Em Sevilha anotei este horário de funcionamento de uma livraria: manhã: 10 a 14 h; tarde: 17 a 21 h. Isso tem a ver também com o fato de que anoitece muito tarde na Espanha. Lembro que andava pela Plaza Mayor em Madri às 21 h e ainda havia a claridade do dia.

-Ao contrário das diversas línguas faladas na Espanha, em suas comunidades autônomas (relativamente), o euskera, falado no País Basco, é muito diferente de todas elas. Não é uma língua derivada do latim.

-Vi muitos cataventos nas planícies espanholas. Os moinhos de vento já estavam presentes na região de La Mancha no tempo de D.Quixote. Lembram que ele investiu contra um deles?... 30% da energia da Espanha é de origem eólica ou solar.

-Outra curiosidade da paisagem, também vista do ônibus. Frequentemente víamos, no alto dos postes de telecomunicações, grandes ninhos de cegonhas, com seus filhotes.

-Próxima à Basílica do Pilar, em Zaragoza (cidade cujo nome deriva de Caesaraugusta, do tempo dos romanos), havia um estabelecimento em que entramos para fazer um lanche. Quem nos atendeu foi uma brasileira de Recife chamada Luana. Goya nasceu perto dali. Há na cidade um museu que guarda um grande acervo de gravuras suas (águas-fortes).

-Uma constatação: nos cartões postais ou nos livros turísticos as atrações das cidades são mais bonitas. Senti isso ao ver a “Sagrada Família” de Gaudí em Barcelona, eternamente em construção (será concluída só em 2026!), de aparência prejudicada pelas gruas e andaimes. Isso ocorreu também com outros edifícios (como La Pedrera de Gaudí, que estava sendo restaurada). Também achei o palácio de Alhambra, em Granada, mais bonito nos cartões postais e nas fotos do que na realidade...

-Em Peñíscola há um castelo-fortaleza no topo da colina, construído pelos cavaleiros templários. Nele residiu Pedro de Luna, o “Papa Luna”, que tomou o nome de Benedito XIII e foi deposto (informações do guia DK). Subi até o alto do castelo e tive uma ampla visão do mar. Senti-me então como um antigo habitante da península ibérica, vigilante, e disse para mim mesmo: “Não há mouro na costa!”.

-Notei que nas principais cidades espanholas, muito antigas e com extensas áreas históricas (geralmente integrantes do Patrimônio Cultural da Humanidade, conforme a UNESCO), há sempre alguma área ou monumento bem moderno. Em Valência vê-se a futurista Cidade das Artes e da Ciência, de impactante beleza, projetada pelo arquiteto Santiago Calatrava. Em Sevilha há o mirante Metropol Parasol. Em Bilbao o museu Guggenheim, todo de titânio. Sem falar de Barcelona, que além dos trabalhos cativantes de Gaudí e outros arquitetos, também tem monumentos e edifícios mais recentes.

-Em Madri os torcedores do Atlético ou do Real Madrid costumam comemorar suas vitórias na praça de Cibeles, adornando a deusa grega com os símbolos dessas agremiações. Foi o que aconteceu em 25 de maio último, com a vitória do Real Madrid.

-Marbella, à beira do Mediterrâneo, mostra que os mouros voltaram a invadir a península ibérica. As casa ali, na chamada Costa do Sol, são na maioria de milionários árabes. Em Porto Banus, um “porto desportivo”, andamos pela rua principal. De um lado estão os iates atracados, do outro, as lojas de famosas grifes. Não é uma rua para se fazer compras e sim para observar. Foi classificada pela nossa guia espanhola como do tipo “Miranda” (Mira e anda!).

-Em Sevilha, o Arquivo de Indias guarda preciosos documentos relativos às relações entre a metrópole espanhola e suas colônias americanas, os quais estão sendo todos digitalizados, o que permitirá a realização de pesquisas históricas à distância.

- Em Palos de la Frontera vimos o local de onde Colombo partiu, em 3 de agosto de 1492, para descobrir a América (em 12 de outubro: levou portanto 2 meses e 9 dias para atravessar o Atlântico!). No local, há um museu a céu aberto, com as réplicas da Santa Maria, Pinta e Niña, a “nau capitânia” e as duas caravelas, que impressionam o visitante pelo seu diminuto tamanho para enfrentar as tempestades do alto mar. Próximo dali, há o Mosteiro de la Rábida, em cujas salas Colombo teria estado, em conversação com os frades franciscanos do Mosteiro. Na mesma região, há um monumento recente, comemorativo dos 500 anos do descobrimento da América. (2014)


sábado, 6 de junho de 2020

"FOLHAS CADENTES" (ELOGIO DO PATRONO)

          
            O livro “Folhas Cadentes”, de Alcides Munhoz (v. foto), cujo subtítulo é Elogio do Patrono (Curitiba, 1925), foi escrito por exigência dos estatutos da Academia de Letras do Paraná.  O elogiado, no caso, é o seu tio Alfredo Munhoz (1845-1921), patrono da cadeira da qual Alcides (1873-1930) foi o primeiro ocupante.   

            Acabei de ler, fascinado, esse livro (disponível no setor de “Documentação Paranaense da Biblioteca Pública do Paraná) especialmente por obter aí informações sobre alguns de meus ancestrais pelo lado da avó paterna, e também sobre a vida curitibana na segunda metade do século 19.

            Minha avó Arabela também era sobrinha de Alfredo Munhoz. Ela era filha de Florêncio José Munhoz, irmão mais moço de Alfredo (aliás, Alfredo, que morreu aos 76 anos, sobreviveu a todos os seus irmãos. E das irmãs, em 1925 – data da publicação do livro –apenas duas ainda viviam).  

            Alfredo foi o primogênito do primeiro casamento do tenente-coronel Caetano José Munhoz, avô de Arabela, que era um importante ervateiro no início da nossa vida como província independente (naturalmente deve-se avaliar essa importância em termos relativos pois Curitiba, na época da emancipação da província, era uma cidade pequena, com uma população de aproximadamente 6 mil habitantes).

            Como se sabe, o ciclo do mate na economia paranaense tem início na década de 1820, e já na década seguinte Caetano José Munhoz é um dos primeiros a instalar engenho de erva-mate em Curitiba (até então eles só existiam no litoral). Foi o primeiro a instalar engenho a vapor, antes mesmo do barão do Serro Azul, conforme afirma Newton Carneiro em “Um Precursor da Justiça Social”.

            Alcides Munhoz refere-se ao seu engenho no Alto da Glória, no “boulevard II de Junho” e descreve vivamente a preparação para a festa de recepção ao Conselheiro Zacarias em sua residência, que ficava ao lado do engenho (havia escravos ajudando nos preparativos, e também uma senhora misteriosa, amiga de Caetano, a quem ele pede francamente para não comparecer no dia da recepção, pois não saberia como apresentá-la ao Conselheiro, face à sua ”incerteza matrimonial” (p. 15)...)  
           
            O livro transcreve duas cartas (de 1857 e 1860) de Caetano e de Francisca, sua primeira esposa (avó de Arabela), aos filhos Alfredo e Caetano Alberto (pai do autor do livro), que estudavam em Petrópolis, no colégio dirigido pelo professor  Kopeck. Essas cartas revelam saborosamente como os pais se dirigiam aos filhos por escrito (uso, por exemplo, do pronome “vós”, talvez pela influência lusitana, pois Francisca era filha do português João Gonçalves Franco), além de revelar os cuidados maternos. A mãe se referia a roupas ou alimentos que enviava pelos “vapores” (navios). A Corte, e por extensão Petrópolis, era sinônimo de civilização, e as pessoas mais abastadas enviavam seus filhos para estudar lá.  Caetano queria que um de seus filhos fosse “Doutor em Leis”, mas eles não se formaram. Fizeram carreira no serviço público, como funcionários do Ministério da Fazenda (as repartições aqui existentes eram chamadas Tesouraria de Fazenda, Alfândega de Paranaguá, Mesa de Rendas de Antonina, Coletoria de Curitiba).

            Alfredo iniciou sua carreira fazendária como ”colaborador” (1863), ocupando sucessivamente os cargos de “praticante” (1864), “segundo escriturário” (1865), “oficial” (1870), “chefe de seção” (1872), “contador” (1873) e “inspetor” (1878).  Nessa última condição, passou um ano (1878-9) em Mato Grosso (Cuiabá), na repartição fazendária local.

            Há uma referência “en passant”, na carta de 1860 escrita por Francisca, a um Florêncio, mas não se trata do pai de Arabela, que tinha então apenas 2 anos e alguns meses. Ela diz: “O Florêncio ainda cá está e por oras vosso pai precisa dele” (p. 18).  Deve tratar-se de outro Florêncio, talvez Florêncio Munhoz da Rocha, sobrinho de Caetano José Munhoz. A propósito, Florêncio José Munhoz (1857-1909), o pai de Arabela, também entraria para a Tesouraria de Fazenda, pois seu nome consta numa carta dos funcionários de Alfredo, cumprimentando-o pelo seu aniversário, em 1887 (p. 40). E no final do livro (p. 101) o autor afirma que ele morreu como Guarda-Mor da Alfândega de Santos. 

            Alfredo aposentou-se, a pedido, aos 44 anos, em agosto de 1889, alguns meses antes, portanto, da proclamação da República. Pretendia dedicar-se à iniciativa particular, fabricando um pó dentifrício, obtido com base em seus conhecimentos de botânica. Mas como não dispunha de capital suficiente para montar a indústria respectiva, acabou não alcançando seu objetivo de ganhar dinheiro com isso (seu sonho era morar na Suíça).  Complementava sua renda de funcionário público dando aulas de inglês e taquigrafia. Exerceu o cargo de “redator de debates” do Congresso Legislativo estadual, atuando também como taquígrafo (p. 57-8). (Alcides Munhoz diz que o velho Caetano, quando morreu repentinamente, deixou a família em situação financeira muito difícil. Ele tinha seu capital empatado no negócio da erva-mate, que era vendida pelo sistema de consignação no mercado platino. E parece que foi prejudicado pelos seus consignatários...) (p. 47).

            Alfredo Munhoz exerceu o jornalismo, sendo um dos fundadores da revista literária “Íris Paranaense” (1873) e fundador da revista “A Colmeia” (1898). Além disso, ao contrário do sobrinho Alcides, católico, ele era espírita convicto, correspondendo-se com cientistas importantes do exterior, interessados no tema.  Fundou (em 1890) e redigiu por muitos anos o jornal “A Luz”, órgão do Centro Espírita de Curitiba.

            Seu irmão Caetano Alberto também fez carreira fazendária. Em Santos foi criticado pelo poeta Vicente de Carvalho que, na condição de jornalista e deputado, mobilizou-se, em ambas as condições, contra o sigilo dos trabalhos de sindicância para apurar irregularidades na repartição fazendária local, trabalhos esses que Caetano Alberto dirigiu, por designação do ministro da Fazenda de então.

            “Folhas Cadentes” traz ainda informações sobre a origem da família Munhoz. Os dados sobre essa família contidos na “Genealogia Paranaense”, de Francisco Negrão, são em grande parte extraídos desse livro de Alcides Munhoz, primo-irmão de minha avó Arabela.   







             

sexta-feira, 15 de maio de 2020

"QUE FIM LEVARAM TODAS AS FLORES"


                                                                

           Esse é o título do livro mais recente de Otto Leopoldo Winck (Kotter Editorial, 2019) que agrada ao leitor não só pela qualidade literária do texto mas também por ser o retrato de uma geração,  nascida no meio do século XX,  e de uma cidade, no caso  Curitiba, especialmente a dos anos 60. Agradará mais ainda aqueles que, como eu, são da mesma geração dos dois protagonistas, e são curitibanos, natos ou por adoção, que viveram esse período na cidade.  

 A prosa é fluente, coloquial, despojada, e mantém sempre o interesse do leitor. Tem um caráter predominantemente memorialista. Em alguns momentos a prosa vira poesia da melhor qualidade. A técnica empregada na feitura do romance é bem moderna, provocando sempre o distanciamento crítico do leitor, pois lembra-o frequentemente do processe de elaboração do romance que tem em mãos.

Há no texto inúmeras citações ocultas, sem indicação de autoria, sobretudo literárias ou de letras de música, que os mais familiarizados nessas áreas identificarão com facilidade. Há também outras citações, de caráter político, como quando se enumeram aquelas relativas à revolução ou extraídas do livrinho vermelho de Mao, o que bem reflete o estado de espírito daqueles jovens intelectuais idealistas que queriam transformar o mundo, candidatos a escritores, cujo maior interesse se concentrava em literatura, música e política. Além das garotas, naturalmente.       

O leitor fica interessado no desenrolar da história de Ruy (que é o narrador nas duas primeiras partes do romance), e seus amigos, principalmente Adrian, admirado por ele, colega de escola no ensino médio. Esse seu melhor amigo, com o mesmo gosto por aquelas áreas, embora mais radical em política, é membro de uma família economicamente superior à de Ruy, cujo pai é dono de um pequeno armazém na cidadezinha do interior do Paraná em que vivem. Ambos se mudam para a capital, a fim de prosseguirem os estudos.

Em Curitiba, Ruy, Adrian e sua namorada Elisa, iniciam a vida universitária, participando ativamente do movimento estudantil. Envolvem-se na luta contra o ensino pago que a ditadura tentou implantar na Universidade Federal (um curso de Engenharia noturno) e nos protestos junto ao prédio da Reitoria, que culminaram com a derrubada do busto do reitor Flávio Suplicy.

. Após o AI-5, em dezembro de 1968, ocorre o endurecimento do regime, reprimindo-se a livre manifestação do pensamento e outros direitos do cidadão. Fecha-se assim todo o espaço para a oposição democrática, o que leva uma parcela dos estudantes, os mais inconformados, a caírem na clandestinidade e a optarem pela luta armada contra a ditadura. Esse é o caso de Adrian, que assim deixa de conviver com Ruy, o qual como tantos outros -- menos idealistas ou não tão ingênuos -- não fazem tal opção, permanecendo, é claro, na oposição ao regime. Ruy passa a trabalhar em jornal, iniciando aí uma longa carreira.   

Dentre suas amizades femininas, destacam-se Elisa, Vera, Clarinha e Joana. Elisa é a mais inteligente e politizada.  Com Vera ele inicia, de fato, sua vida sexual (não conta a Casa -de tolerância- da Filó, lá do interior). Ela o leva para um baile no Clube Curitibano e ele vê que não tem a nada ver com aquele círculo social, representado pelo pai de Vera, que pensa muito diferente dele. Claudinha é a irmã de Adrian, que ficou no interior, e não revelou o seu amor. Joana é casada com o irmão de Adrian. Ela dá em cima de Ruy, que acaba se tornando seu amante. Um dia, o marido os surpreende nus na cama. Aqui ocorre uma pequena frustração do leitor curioso: o tópico se encerra sem contar o que aconteceu na sequência  (a curiosidade é aumentada pelo fato de que Joana estava grávida de Ruy)...

            O livro traz inúmeras referências típicas da cidade nos anos 60, não só a seus bares, mas às lojas comerciais, cinemas, livrarias, prédios, praças (com suas hermas e estátuas), galerias, bairros, rios e arroios, Vagão do Armistício “do pai do Poty”, farmácia Stelfeld “e seu relógio de Sol”, etc Também são citados escritores, outras personalidades, e tipos populares da cidade. Essas longas referências, ou enumerações, nos transportam para a Curitiba da época, ajudando a bem caracterizá-la. Também ocorrem no plano da linguagem, como o rol de gírias e expressões, de sinônimos de maconha, de estilingue etc 

Na terceira e última parte do livro, o narrador é outro, pois Ruy é tratado  na terceira pessoa. Aborda o reencontro, na época atual, dos dois amigos, já quase septuagenários, no bar Stuart, o mais antigo de Curitiba, situado no centro da cidade, na praça Osório.
           
Nesse reencontro rememoram os anos de juventude.  Ruy é agora um jornalista aposentado, desencantado com a profissão, que o obrigou  a sacrificar a literatura pelo exercício de uma atividade utilitária e até mesmo mercenária. Adrian, por outro lado, tornou-se um empresário do ramo da construção civil e mora em São Paulo. Durante a longa conversa, consomem muito chopp e “carne de onça”, um prato típico local, cuja receita é descrita no livro. Anteriormente, já fora citado o famoso sanduíche de pernil do bar Triângulo, na rua XV. Esses registros das peculiaridades de Curitiba, juntamente a muitas outras, em todas as áreas, ajudam a compor o retrato da “alma da cidade”.    

Ruy verifica, desapontado, que Adrian é agora um conservador, politicamente desiludido, um cético e epicurista, repudiando aqueles tempos de rebeldia política, cujas consequências ele sofreu na carne, pois foi preso, torturado e chegou a cumprir uma pena de alguns anos.  Depois, “desbundou”, como se dizia, acreditando que antes de mudar as estruturas é necessário mudar o ser humano. Ruy percebe que há agora uma distância enorme entre eles.

Essa é a sinopse do romance escrito por Ruy, e complementado por seu professor na oficina literária em que se inscreveu depois de aposentado. Está   datado assim: 11 de março- 15 de novembro de  2017.

Segue-se um texto adicional, escrito por tal professor. Verificamos então que o romance é, na realidade, resultado do seu trabalho nessa oficina. O professor gosta do livro e decide publicá-lo, mas encontra resistência da família de Ruy, que o processaria se publicasse algo que a comprometesse. Assim, o professor, que conclui de fato o livro de Ruy, acaba assumindo a sua autoria. Ele se autoidentifica: trata-se do próprio Otto Leopoldo Winck

O volume é concluído com um apêndice, que transcreve uma matéria sobre os hippies escrita por Ruy, então jornalista iniciante, e publicada num jornal local, em 1968. Ela contém uma entrevista com seu amigo Grillo Flowers.  

O título do livro-- “Que fim levaram todas as flores”--  que bem expressa o desapontamento daqueles que foram jovens sonhadores um dia, deriva da letra de uma canção dos “Secos e Molhados, mais uma das inúmeras referências, nesse caso musical, que recriam, habilmente, o espírito daquela época. Com o mesmo objetivo, muitas referências são feitas ainda ao rock internacional e suas obras mais notáveis.

O romance que lemos é, como disse, o resultado do trabalho em uma oficina literária. Esse fato nos remete a uma outra importante característica da obra: a ênfase no processo de sua própria elaboração, indicada em inúmeras ocasiões. Por exemplo, quando Ruy diz a Adrian, no Bar Stuart, que está escrevendo um romance memorialístico, que ele será um de seus personagens e que aquele reencontro mesmo poderia fazer parte do livro. Outro exemplo é dado pela passagem em que o narrador revela suas dúvidas sobre a melhor expressão a ser empregada, e apresenta várias possibilidades. Outro ainda, quando se afirma que os dois velhos, no Stuart, talvez já estivessem na terceira fase da bebedeira. E no texto consta, entre parênteses: “(Não sei se suspiraram, o narrador não percebeu”).

Constata-se ademais breves (e frequentes)  interrupções da história para se indicar o significado de certas palavras utilizadas, arrolando-se inclusive seus sinônimos (por exemplo, o rol dos sinônimos de maconha, que enche meia página). Percebe-se aqui uma aparente gratuidade no procedimento. Mas este se justifica pois evidencia a riqueza do nosso léxico, pela apresentação das muitas possibilidades a serem exploradas, o que é totalmente adequado num romance que pretende enfatizar o seu próprio processo de elaboração.  

Desse modo, a técnica literária empregada nesse livro é bem moderna, tornando o leitor sempre consciente de tal processo. Isso ocorre também  com relação ao cinema. Lembro de um dos filmes de  Godard (mais uma referência típica da época) em que aparecia um letreiro com os dizeres: “un filme en train de se faire”.

O texto principal é composto de pequenos segmentos, separados por três asteriscos, e avança conforme evolui a narrativa. Mas  em certas ocasiões esses minicapítulos podem ser inteiramente tomados, como se viu acima, pela enumeração de aspectos típicos de Curitiba. Também podem tratar de outros assuntos como por exemplo, na terceira parte, sobre o livro do Zohar, certamente motivado pelo interesse atual do velho Adrian na “cabala autêntica” para reatar suas raízes judias. Esse minicapítulo aborda o papel exercido pelas letras, que são tratadas no Zohar de modo personalizado. Elas já existiam antes da criação do mundo pelo Altíssimo e quem ocupa a primazia é o Aleph. Num romance voltado para a sua própria elaboração, tratar das letras também parece ser bem conveniente...

Cabe por fim ressaltar a presença de algumas passagens, em que a prosa de Otto vira poesia de alta qualidade, quando afirma pela boca de Ruy:

--“Enquanto isso, lá no alto, a lua, apática testemunha, era uma foice de prata num campo de estrelas /.../ ” (p. 206)

Ou quando o jovem Ruy escreve em um de seus cadernos, imbuído do existencialismo sartreano:

--“No fundo, o desamparo é a nossa maior herança. Nascemos sós, morreremos sós. Bastardos, trânsfugas, párias, não sabemos para onde vamos, não sabemos sequer por onde vamos. Impossível se fazer entender, tentar explicar, articular qualquer palavra coerente. Ninguém nos ouviria: nem entre os anjos, nem entre os homens. Aliás, não há em lugar algum alguém velando por nós, alguém zelando por nossos passos, pronto a nos socorrer  em caso de queda ou pânico. Se, ao sairmos de casa, alguém ainda nos acenava, não há a menor garantia de que, ao regressarmos um dia, ainda esteja lá nos esperando. O jeito é estender a mão e tocar os outros que, igualmente desamparados, igualmente extraviados, vagam ao nosso lado. E quem sabe assim, de braços dados, tentar chegarmos juntos a um lugar seguro”. (p. 223-4)

Ou quando o velho Ruy fala, e se sente a presença oculta de Dalton Trevisan, Heráclito e Proust:

--“Não adianta partir em busca de Curitiba perdida. Não existe uma Curitiba perdida. Existem muitas. Já no meu tempo, as pessoas que hoje têm a minha idade, já reclamavam que não encontravam mais sua velha Curitiba. Nunca encontrariam. Nunca encontraremos. A Curitiba por ventura encontrada hoje é a Curitiba perdida amanhã. Como tudo. Nada volta do rio do tempo. Nem as águas, que são sempre outras. Nem as lágrimas, que são sempre poucas. E a memória, tão parca, tão frágil, tão pobre, não tem o condão de recuperar o tempo perdido. Nem a literatura, coitada, essa senhora tão pretenciosa. Este livro não é uma tentativa de recuperação de nada. Não é uma tentativa de salvação de nada. Este livro é só um testemunho, afônico, agônico, de que tudo passa: as amizades, as lutas, os medos, os sonhos”. (p. 239)