segunda-feira, 25 de abril de 2022

ROMÁRIO MARTINS E MEU PAI

A leitura de "O Forjador- Ruínas de um Mito- Romário Martins", de Décio Roberto Szvarça (Curitiba, Aos Quatro Ventos, 1998), me fez lembrar a enorme influência que esse intelectural paranaense -- um dos nossos primeiros historiadores -- exerceu sobre meu pai. O livro consiste numa dissertação de mestrado apresentada no curso de pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Para o autor, Romário é um "historiador historicista" (em contraposição ao "historiador dialético" com quem Décio se identifica), criador de mitos, forjados para criar aqui uma sociedade civilizada, cujo modelo é basicamente europeu (o Paraná povoado de pequenos produtores autossuficientes, "Curitiba, a Munique brasileira" etc). Em suma, Romário está fazendo ideologia, e não ciência. Adotou o ponto de vista das elites dominantes, mais explitamente quando defendeu os interesses da burguesia do mate e da madeira. Essas elites controlavam o poder político em 1930 quando foram dele destituídas pela Revolução. Romário era vinculado ao Partido Republicano, foi deputado estadual por muitos anos e ocupou o cargo de Diretor de Agricultura do Estado antes de 1930. Acredito que essa abordagem-- aqui muito esquematicamente apresentada -- é a mais adequada. Minha posição é a de que a História deve ser estudada do ponto de vista daqueles que a fazem efetivamente, os trabalhadores do campo e da cidade, e não das elites dirigentes, que em última análise controem e mantêm o seu patrimônio explorando-os. Mas como deixar de ter simpatia por um homem que dedicou toda a sua vida aos estudos de sua terra e da sua gente (título, aliás, de um de seus livros), produzindo inúmeros trabalhos sobre esses assuntos? Quanto mais me "internacionalizo" (nesse processo de globalização crescente), tanto mais me interesso pelas coisas nossas, pela história do meu Estado, da minha cidade, do meu bairro, da minha rua... (ou quanto mais envelheço, tanto mais me interesso pela minha própria história...). Meu pai admirava muito Romário, considerando-o um mestre, privando inclusive de sua amizade. Ele o tratava, amistosamente, por "coronel", pois Romário recebera essa patente da Guarda Nacional há muitos anos. Quando meu pai lançou "Lisímaco" em 1944, o veterano jornalista e historiador escreveu o prefácio do livro, referindo-se elogiosamente ao seu autor, então com 36 anos. Nessa época, Romário contava 70 anos, e faleceria quatro anos depois. Lendo a dissertação antes referida, algumas passagens me mostraram como Romário exerceu poderosa influência sobre meu pai, principalmente quanto aos seguintes aspectos: -interesse predominante pela história local; -adoção do "paranismo", o movimento de valorização das coisas nossas, lançado por Romário; -idealização do Paraná, especialmente quanto aos seus aspectos naturais ("terra paranisíaca", como meu pai a chamou uma vez); -espírito público desenvolvido, que se traduziu na proposição de muitos projetos de lei de interesse coletivo, apresentados por vereadores ou deputados amigos; -amor aos símbolos paranistas (o pinheiro, a pinha e o pinhão, por exemplo) e entusiasmo por seu aproveitamente na arte, como fez o escultor João Turin; -preocupação com o nome das ruas da cidade de Curitiba, propondo pelos canais adequados muitos nomes (Romário escreveu um trabalho intitulado-- "Psychologia da Placa"); -elogio das qualidades da erva-mate, especialmente como substituto do álcool, o que foi mencionado por Romário; -valorização da imagem da padroeira de Curitiba (Nossa Senhora da Luz) que se encontra na Catedral Metropolitana e está associada aos primórdios de Curitiba; sobre ela, Romário escreveu-- "Bicentenário de uma Santa"; -uma certa prevenção contra os catarinenses, influenciado pela Questão de Limites entre o Paraná e Santa Catarina, ocasião em que Romário forneceu subsídios históricos para reforçar a argumentação paranaense. É claro que só se deve avaliar um homem dentro dos condicionamentos do seu meio e do seu tempo. E é nesse sentido que Romário Martins deverá ser avaliado por todos nós, que, com reservas, o admiramos. PS- A foto de Romário Martins acima (um crayon de Andersen) foi extraída de "Expansão Econômica" nº 37, abril de 1939. Essa publicação era dirigida por Sílvio van Erven e redigida por seu filho, Herbert Munhoz van Erven.

INSCRIÇÃO TUMULAR

Dediquei-me, numa certa época,a traduzir alguns sonetos antológicos de Shakespeare. Não imaginava que fazer uma simples tradução, sem metro nem rima, mas absolutamente fiel ao original, fosse um trabalho tão árduo. São os ossos do ofício... Mas o que eu queria salientar aqui é a semelhança que encontrei entre as imagens da primeira estrofe do soneto 73 e as de uma quadra que meu pai compôs, por solicitação de parentes, relativa à sua prima Olga, recém falecida, para constar numa pequena placa a ser afixada no túmulo da família Soares Gomes Munhoz, no Cemitério Municipal de Curitiba, onde ela foi sepultada. No primeiro quarteto daquele soneto, Shakespeare, ou a pessoa que fala no poema, se compara à estação do ano em que as folhas se tornam amarelas e caem, i.e. ao outono, e logo se refere ao frio, que faz certos galhos desfolhados tremerem, sugerindo assim a aproximação do inverno: That time of year thou mayst in me behold When yellow leaves, or none, or few, do hang Upon those boughs which shake against the cold, Bare ruin'd choirs, where late the sweet birds sang. Em português, os versos dizem: Aquela época do ano em mim tu podes ver Em que nenhuma ou poucas folhas amarelas pendem Desses ramos que tremem ao vento frio, Coros despojados, em ruínas, onde, tardios, doces pássaros cantavam. Por outro lado, na inscrição tumular está escrito: O inverno não alcançaste, Livre estás em pleno outono. Guarda, agora que acordaste, A lembrança do teu sono. A coincidência de imagens está na associação das fases da vida humana às estações do ano, a maturidade associada ao outono e o inverno à velhice, embora, no caso de Shakespeare, as estações não sejam mencionadas explicitamente, e sim indicadas pelos seus efeitos sobre a natureza. De todos os poemas que meu pai escreveu, este é o de que gosto mais. A autoria só é indicada pela letra "H" (de Herbert). Os dois últimos versos desse acróstico (que normalmente não são boa poesia) expressam toda a sua convicção religiosa, crente que era na imortalidade da alma. Para ele, quem morria acordava para a verdadeira vida (enquanto vivos, seríamos como pessoas que dormem, embrutecidas pela falta de luz, ou esclarecimento). Ambos os versos são muito humanos (e por isso belos) ao formularem o pedido para que Olga, a quem agora foi revelado o mistério da existência (e vive em outro patamar), não se esqueça daqueles que a amaram aqui na Terra, ainda presos a uma condição inferior.