quarta-feira, 20 de outubro de 2010

AS ORIGENS DO ESTADO DO PARANÁ SEGUNDO O SEU PRIMEIRO HISTORIADOR



O nosso primeiro historiador, ou cronista histórico, foi um português nascido na cidade do Porto chamado Antonio Vieira dos Santos (1784-1854), que veio para o Brasil muito jovem, em 1797, e já no ano seguinte vivia em Paranaguá (1). Sobre essa cidade e município escreveu uma “Memória Histórica” em 1850 que é uma fonte preciosa de informações sobre as origens do Paraná pois nela transcreve os registros contidos em livros e demais documentos que encontrou na Câmara daquela cidade, a mais antiga do Estado. A preservação desses documentos era então uma preocupação do Império e também da província de São Paulo, à qual estávamos então subordinados, como mostra uma portaria publicada na edição da referida “Memória Histórica” a que tive acesso (2). Mas a nossa subordinação não duraria muito tempo mais, uma vez que em 1853 o Paraná se emanciparia politicamente de S.Paulo. O trabalho de Vieira dos Santos já reflete fortemente a busca de uma identidade local, no balanço que faz de todo o passado do território, de mais de três séculos, inclusive do movimento emancipacionista, ao qual se solidariza...

O autor começa por onde deveria começar, pelo início da ocupação da região, feita por gente que habitava o sul do litoral de S. Paulo, especialmente Cananéia, Iguape e S.Vicente, dada a maior proximidade desses povoados. Num parágrafo memorável, cuja beleza resulta da evocação dos elementos naturais da baía de Paranaguá, Vieira dos Santos sintetiza como teria sido a penetração primeira nessa baía, revelando, além do conhecimento histórico, também da flora e da fauna da região, assuntos igualmente contemplados em seu livro, dentre alguns outros mais:

Na verdade seria bem agradável aos primeiros povoadores vindos de Cananeia quando pela primeira vez entraram pela barra a dentro de tão formoso lago semeado de tantas ilhas e suas margens orladas de verdes mangais, circuladas de serrarias e montanhas de diversas figurações e alturas, acobertadas de riquíssimos bosques e espessas matas, onde sobressai o ararivá, o cedro, a palmeira, a pindaíba e o indaiá, onde cruzavam nos ares imensos turbilhões de papagaios, tucanos e periquitos, onde exércitos de formosíssimos guarás, vestidos de escarlate e quais soldados britânicos voavam em linha de batalha militarmente; onde o canto do pintassilgo, do canário, do bonito e sabiá, regozijavam os ouvidos, onde o trinado da araponga repicava o sino da alegria pela boa-vinda dos novos hóspedes, e onde finalmente centenas de índios carijó, estupefactos nas suas pequenas aldeias de que a baía estava povoada; e à porta de suas choupanas, ou dentro de pirogas de suas pescarias, admirados estavam vendo a entrada daqueles novos hóspedes, que os haviam de senhorear, ensinando-lhes a educação, a civilidade e a religião, e a entrarem algum dia na ordem social das mais nações e talvez já estão meditando a maneira porque haviam de expulsar à força tais hóspedes estrangeiros, com algum assalto inesperado; mas aqueles novos ingressos, evitando tais ciladas, se quiseram acautelar, indo desembarcar na Ilha da Cotinga, como lugar de mais seguro asilo, onde logo principiaram a fazer seus estabelecimentos: essa vista linda e pitoresca das baías de Paranaguá, melhor as poderia escrever um Milton. (3)


Em 1532 Martim Afonso de Sousa fundou S. Vicente, a primeira vila do Brasil. Antes disso, porém, encontrou-se na ilha de Cananéia com Francisco de Chaves, um bacharel português e cinco ou seis castelhanos. “Esse bacharel havia 30 anos que estava degradado nesta terra. E o Francisco de Chaves era mui grande língua desta terra” (p.15, nota 8; Vieira dos Santos cita aqui o diário de navegação de Pero Lopes de Sousa). Eles dizem a Martim Afonso que se fosse organizada uma expedição ao interior, ela localizaria minas de ouro e prata, e lhe traria muitos escravos carregados desses metais. Martim Afonso então autoriza uma expedição, composta por 80 homens, sob o comando de Pero Lobo; mas dessa expedição nunca mais se terá notícia...(p.15-16).

Embora Vieira dos Santos faça referência a áreas mais próximas ao litoral paulista como aquelas em que provavelmente a expedição caiu vítima dos índios, hoje os autores identificam essa expedição com aquela mencionada nos “Comentários” de Cabeza de Vaca. Aí se diz que os nativos encontrados pelo “adelantado” lhe informaram que os portugueses enviados da costa paulista foram trucidados por índios hostis na confluência dos rios Iguaçu e Paraná. A expedição de Pero Lobo foi assim a primeira iniciativa oficial portuguesa de penetração ao interior do Brasil (“a primeira bandeira”- p. 15), e ela ocorreu em terras paranaenses (do lado espanhol, a historiografia registra a façanha de Aleixo Garcia, que em 1524 teria atravessado também essas terras, orientado pela mesma cobiça dos metais preciosos, e que atingiu o império inca seis anos antes de Pizarro). Certamente notícias dessas riquezas minerais a oeste haviam sido repassadas pelos índios aos degredados de Cananéia, assim como o foram antes a Aleixo Garcia, um náufrago da expedição de Solis, o descobridor do rio da Prata (tanto Solis como Garcia eram portugueses, mas estavam a serviço da Coroa espanhola).

Em 1534 Portugal decide adotar, para o Brasil, o sistema das capitanias hereditárias já experimentado antes “em suas possessões insulares do Atlântico”, atribuindo à iniciativa privada a responsabilidade pela ocupação efetiva da sua colônia americana. Como donatários, o Rei português escolheria mercadores e funcionários, gente bem posicionada na corte e enriquecida nos “negócios das especiarias no Oriente” (4).

O território do atual estado do Paraná estava contido em duas capitanias, a de S Vicente, atribuída a Martim Afonso de Sousa, e a de Santana, concedida a seu irmão, Pero Lopes de Sousa. A primeira estendia-se por uma costa de 45 léguas, desde Bertioga até a ilha do Mel, e a outra, abrangendo 40 léguas, desde essa ilha até Laguna, se considerarmos o limite inferior do tratado de Tordesilhas (5). Mas esse limite não era entendido da mesma forma por portugueses e espanhóis. Para os portugueses, o limite ambicionado, era, na realidade, o rio da Prata, que aliás Pero Lopes de Sousa subiu,em sua exploração da região, e chegou a assinalar “com seus padrões a posse da Coroa portuguesa”, ignorando assim aquele tratado (6). Bem mais tarde, no século XVII, os portugueses chegariam a fundar a colônia do Sacramento na outra margem do Prata, em frente a Buenos Aires.

Será a busca de metais preciosos a motivação econômica para que se iniciasse a ocupação do litoral paranaense. De fato, a busca do ouro era uma preocupação constante daqueles aventureiros lusitanos que habitavam o sul do litoral paulista. Já em meados do século XVI se constatam na capitania de S. Vicente tais pesquisas, conforme afirma Carvalho Franco (7). Seria de se esperar que os pesquisadores de S. Vicente ou Cananéia penetrassem o litoral contíguo ao seu, como uma projeção dessa busca que empreendiam.

Diz Vieira dos Santos que os primeiros ocupantes passaram da ilha da Cotinga para terra firme, “investigando a navegação dos rios dos Almeidas, Correias e Guaraguaçu, até suas nascentes, e nas margens destes descobriram abundantes minas de ouro, que depois foram conhecidas pelo nome-- Minas de Paranaguá-- inclusive outras que se descobriram em diversos rios e lugares dos contornos, porque é constante que antes do ano de 1578, já há muito tempo se trabalhavam nestas minas” (p.19). Francisco Negrão, em nota a essa passagem, questionou aquela data, tão recuada no tempo, para a descoberta e exploração das minas que, segundo ele, teria ocorrido por volta de 1640 (p. 20).

A tradição diz que o primeiro ouro encontrado no Brasil foi o de Paranaguá. Trata-se de ouro de lavagem, o ouro encontrado nos diversos rios que nascem na serra do Mar e vão desaguar na baía de Paranaguá. Mas aparentemente a descoberta do primeiro ouro deve ter ocorrido muito tempo depois dos primeiros contatos dos vicentistas na baía de Paranaguá. A menção mais antiga a eles consta do livro de Hans Staden, soldado da expedição espanhola de Diego Senabria cujo navio, em 1550, desorientado, veio dar em Superagui em vez da ilha de Santa Catarina à qual se destinava.

No continente, os primeiros habitantes do nosso litoral estabelecem-se às margens do rio Taguaré (p.19), atual Itiberê, originando assim a vila de Paranaguá, que só seria reconhecida oficialmente como tal em 1648. Sua população, nessa época, era de 6 a 8 mil habitantes (p.34). Por outro lado, a fundação da vila de Curitiba para Vieira dos Santos dataria de 1654 (p.38), antes portanto das datas hoje reconhecidas para essa fundação, que são aquelas indicadas por Negrão, em nota a essa passagem (1668 para a instalação do pelourinho, e 1693 para a instalação oficial da vila de Curitiba, quando se elegeram as suas autoridades) (p. 38). O autor da “Memória Histórica” atribui o papel mais importante quanto à fundação das vilas de Paranaguá e Curitiba a Eliodoro Ébano Pereira, o que também é questionado por Negrão. Ele atribui tal papel a Gabriel de Lara (p. 33). O objetivo de Eliodoro, que percorreu todo o Sul enviado pelo governo português, era avaliar a sua produção aurífera, a fim de assegurar à Coroa a percepção da parte que lhe era devida, ou seja a quinta parte de seu valor.

Em 1697 chegará a ser criada em Paranaguá uma Casa de Fundição do ouro (p.61), para a qual deveria ser encaminhado o ouro obtido não só em Paranaguá mas também em Curitiba, São José dos Pinhais e Campos Gerais. Até então, o ouro era enviado a Iguape ou ao Rio de Janeiro para ser fundido e identificado o montante do quinto real. Mas tal Casa terá vida curta, pois elas foram abolidas em 1735 pelo "Governador do Estado do Brasil" Gomes Freire de Andrade, que instituiu novo método de arrecadação dos quintos de ouro (p.148).

O “capítão-povoador” Gabriel de Lara era a pessoa de maior autoridade no lugar, autoridade essa que decorria do fato de que ele representava o Conde de Monsanto, depois Marquês de Cascais, herdeiro do primeiro donatário, Pero Lopes de Sousa. Mas esse conde não era o único herdeiro. Também o era D. Mariana de Faro Sousa. As terras em questão (“cem léguas de terra que tinha na costa do Brasil”) foram indicadas como dote, conforme autorização dada por um “alvará régio” de 1651 (p. 36 e 40), por ocasião de seu casamento com D. Luiz Carneiro, Conde da Ilha do Príncipe, o qual se dispõs a lutar pelos direitos deles.

Como salienta Negrão (p. 44), em razão dessa pendência, houve uma época em que Paranaguá teve dois capitães-mores, um nomeado pelo conde da Ilha do Príncipe e outro, Gabriel de Lara, pelo marquês de Cascais. Mas é Lara quem acabará por prevalecer na sua governança pois o Marquês de Cascais, para mais bem preservar os seus interesses, resolveu criar em 1656 a Capitania de Paranaguá, independente da de Itanhaém, da qual era donatário o conde da Ilha do Príncipe (p. 13). A Capitania de Paranaguá duraria até 1711, quando suas terras foram adquiridas pela Coroa portuguesa (p.68).

Gabriel de Lara faleceu em 1682; até sua morte, ele foi o capitão-mor de Paranaguá. Sucedeu-o nesse cargo, durante o período de existência da Capitania, Tomás Fernandes de Oliveira, Gaspar Teixeira de Azevedo, Francisco da Silva Magalhães e João Rodrigues de França.

Como se depreende das observações de Vieira dos Santos, hierarquicamente, a Capitania de Paranaguá estava subordinada ao governo do Rio de Janeiro que por sua vez subordinava-se ao sediado na cidade de São Salvador da Bahia, capital do Estado do Brasil. Dentre os governadores do Rio de Janeiro destaca-se, nessa Memória Histórica, o nome de Salvador de Sá Correia e Benevides, governador do Rio de Janeiro desde 1648 (p.25), que inclusive chegou a visitar Paranaguá em 1660 a fim de avaliar in loco suas minas e informar sobre elas ao Rei de Portugal (p.33 e 45).

Vieira dos Santos cita determinações do governo central que deviam ser obedecidas pela Capitania de Paranaguá e geravam hostilidade da sua população. Assim, por exemplo, a Capitania deveria fornecer índios aldeados a fim de que, em 1698, fossem reforçar uma expedição que iria combater índios bravios no Rio Grande do Sul (p.61 e 62). Antes disso, em 1659, o autor registra uma vereança da Câmara de Paranaguá na qual se requereu que “não fossem retirados os índios para o Rio de Janeiro, como ordenava o Governador do Estado, por ficar a terra despovoada e não haver quem trabalhasse nas minas”, além de deixar a terra “ sem defesa” contra “o inimigo holandês” (p. 43-44). A contribuição compulsória também poderia ser em alimentos ou mesmo em dinheiro. Após Manoel Lobo ser encarregado de estabelecer a colônia do Sacramento oficiou à Câmara de Paranaguá em 1679 solicitando o fornecimento de farinha de mandioca para a sua expedição (p. 56-57). Quando os franceses invadiram o Rio de Janeiro em 1711 Paranaguá foi solicitada a fornecer farinha, peixe e dinheiro em favor do pessoal mobilizado para combater os invasores (p. 68). Essas demandas a serem atendidas geravam naturalmente oposição por parte dos moradores da Capitania, pois agravavam a sua pobreza e retiravam mão-de-obra das atividades econômicas relacionadas ao ouro, e também à prata, igualmente explorada, embora, segundo Vieira dos Santos, não se soubesse qual era a localização de tais minas (o nome de “Serra da Prata” todavia, para ele seria indicador da existência de tal metal precioso na região) (8). Além disso, enfraqueciam a defesa da Capitania, cujas baías poderiam ser visitadas por piratas, como aconteceu em 1718 e 1726 (piratas franceses) (p. 35).

Para concluir, duas observações pontuais que se podem destacar na cronologia apresentada pelo autor, uma relativa a 1686 e outra a 1699.

1686 ficou caracterizado como um ano terrível para Paranaguá, uma vez que ela, assim como outras vilas da costa brasileira, foi assolada pela peste, que produziu elevado número de mortes. A situação era tão dramática que as igrejas dessas vilas litorâneas chegavam a suspender o dobre dos sinos para não aterrorizarem ainda mais as populações...

Quanto a 1699, nesse ano a Companhia de Jesus mandou alguns religiosos a Paranaguá, antigo desejo da comunidade, que assim poderia contar com o ensino ministrado pelos padres. Para que isso ocorresse, entretanto, houve uma negociação com a Companhia, que só atendeu ao convite em troca da oferta, por Paranaguá, de significativos bens materiais (metade da ilha da Cotinga, cem cabeças de gado nos campos de Curitiba, uma importância “em dinheiro contado”, uma casa de pedra e cal, terras etc (p.60, 63, 64).




NOTAS

(1) “Dicionário Histórico-Biográfico do Paraná”. Curitiba: Chain; Banco do Estado do Paraná, 1991- p. 428. Cf também as informações autobiográficas de
Vieira dos Santos in “Memória Histórica de Paranaguá”- v.I- Curitiba: Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá, 2001- p. 13, nota 4
(2) Santos, Antonio Vieira dos—“Memória Histórica de Paranaguá”- 2 volumes- Curitiba: Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá, 2001 (as páginas indicadas no texto referem-se a essa edição, de ortografia atualizada, que foi cotejada com a seguinte: “Memoria Historica. Chronologica, Topographica e Descriptiva da Cidade de Paranaguá e do seu Municipio”. Curityba: Typ. da Livraria Mundial, 1922, e também com a edição de 1951, disponível no acervo da Biblioteca Pública do Paraná)
(3) Santos, Antonio Vieira dos—“Memória Histórica de Paranaguá”- volume I- Curitiba: Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá, 2001, p. 75.
(4) “História Geral da Civilização Brasileira“- sob a direção de Sergio Buarque de Holanda. Tomo I- “A Época Colonial”, v.1- S.Paulo: DIFEL, 1985- p.95, 97 e 106
(5) Bueno, Eduardo—“Brasil: uma História”. 2ª ed rev.- S.Paulo: Ática, 2003- p. 44. Ver também Santos, Antonio Vieira dos—op cit, v.I, p.16-17.
(6) “História Geral da...”, op cit, p. 93
(7) Franco, Francisco de Assis Carvalho—“Introdução” a “Duas Viagens ao Brasil” por Hans Staden. S.Paulo: Sociedade Hans Staden, 1942, p. 13, nota 27
(8) Segundo F.A. Carvalho Franco, “Nos tempos coloniais não se encontrou prata no Brasil, muito embora para isso se tivessem feito bastas diligências” (cf. na sua “Introdução” ao livro de Hans Staden antes citada, p. 13, nota 27)

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