quarta-feira, 24 de outubro de 2012





 SOBRE "CRIME E CASTIGO"

           

             Em S.Petersburgo, na Rússia czarista do século XIX , um ex-estudante de Direito pobre, de 23 anos, que vive de uma parca mesada enviada pela mãe e irmã, assassina com uma machadinha uma velha usurária, e também casualmente a irmã dela, que surge de repente no local.  Esse é o crime do título do livro, apresentado logo no começo do romance, o qual se estenderá por muitas páginas que se voltam para os  efeitos que tal ato, aparentemente gratuito, produz sobre a mente e o corpo de Raskólnikov, o assassino.

            Ele é um intelectual, que algum tempo antes publicara um artigo com suas ideias peculiares a respeito do crime num jornal local. Considera-o aceitável, quando necessário para a superação de obstáculos à atuação de homens extraordinários. Seria permitido, por exemplo, a Newton ou a Napoleão, para que o primeiro pudesse afirmar suas ideias inovadoras sobre o mundo ou o segundo, desenvolver sua estratégia militar. Enquanto o crime seria proibido para os seres humanos comuns (a maioria), seria permitido para os extraordinários.  Ele não acredita assim numa condenação absoluta do crime, como faz a religião, mas considera-o permitido a algumas pessoas em determinadas circunstâncias.
           
Raskólnikov não se arrepende de seu crime, pois acredita que um “piolho” como a velhota usurária deveria ser eliminado em nome do progresso social. Sua má ação significaria muitas boas ações, ou seja, significaria ajudar aos seus familiares, e a ele próprio, com o produto do roubo. Mas após o assassínio ser cometido por uma determinação intelectual, ele não consegue controlar suas reações emotivas. Apressa-se em esconder o produto do roubo, não o utilizando assim para o fim a que se destinava (ele nem mesmo se dá conta de quanto roubou da usurária, a quem recorrera várias vezes antes do crime, penhorando seus poucos bens por um valor excessivamente rebaixado).
   
Raskólnikov descobre que não é uma pessoa extraordinária. Ele é profundamente abalado pelo cometimento do crime, e encontra nisso o seu real castigo. Ele gostaria de ter a indiferença de Napoleão perante os inúmeros crimes que cometeu...  

O romance nos faz pensar que as máximas morais, de fato, não são absolutas, diferentemente do que pregam as religiões.  “Não matarás!”, “não furtarás” etc. são máximas que dependem das circunstâncias de tempo e lugar. Será que o assassínio de Hitler, naquela conjuntura histórica de sua ascensão ao poder, não encontraria sua justificativa em termos éticos? Tratava-se de uma ação má que implicaria em muitas ações boas, ou seja, salvaria a vida de milhões de pessoas, vítimas da II Guerra, além naturalmente dos judeus...   

Dostoiévski prende a nossa atenção o tempo todo com a sua hábil narrativa. As histórias vão se sucedendo paralelamente ao seu eixo principal, concernente a  Raskólnikov. Assim, somos apresentados ao drama dos outros personagens, destacando-se aqui o de Marmeládov, alcoólatra, de sua esposa Ekatierina, tísica, e da filha Sônia, obrigada a se prostituir para ajudar a família e dar de comer aos irmãos menores. Há também o juiz de instrução Porfíri Pietróvitch, que em seus diálogos frequentes com Raskólnikov, exerce uma sutil pressão psicológica sobre ele, agravando as suas tensões interiores de homem não-extraordinário, que acabarão por fazê-lo confessar o crime.

No final, Sônia acompanhará Raskólnikov à Sibéria, onde este cumprirá sua pena de 8 anos de trabalhos forçados, pena essa que foi reduzida por terem sido levados em conta, no processo, vários atenuantes. Ao longo do romance é citada uma passagem dos Evangelhos, a da ressurreição de Lázaro, que adquire um valor simbólico no desfecho da narrativa, quando Raskólnikov reconhece enfim em si seu amor pela devotada Sônia, ex-prostituta, ressurgindo assim para uma nova vida com ela, antevista no futuro, após alguns anos, quando ele cumprir a pena. Esse desfecho mostra que o protagonista rende-se à religiosidade de Sônia e reflete também a visão de mundo de Dostoiévski.     

Sônia pode acompanhar Raskólikov à Sibéria porque recebeu um auxílio financeiro de Svidrigáilov. Este -- protagonista de outro drama, paralelo ao do jovem assassino -- é um viúvo, jogador e libertino, apaixonado pela irmã de Raskólnikov, que no passado trabalhou em sua casa como preceptora. Mas Dúnia não quer saber dele. Rechaçado por ela, sem nenhuma esperança de conquistá-la, acaba se suicidando. Antes disso, porém, distribui seu dinheiro em favor de várias pessoas, além de encaminhar a uma instituição adequada os irmãos menores de Sônia...  Assim, o libertino revela sua índole boa, evidenciando a ambiguidade deste personagem, como também ocorre com outros...

Para concluir, um alerta aos leitores. A edição de “Crime e Castigo” que li, da  L&PM,  lançada em 2010, contém muitos erros de revisão. Isso às vezes prejudica o prazer da leitura desse notável romance, publicado pela primeira vez em 1866.    

     

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