segunda-feira, 25 de abril de 2022

INSCRIÇÃO TUMULAR

Dediquei-me, numa certa época,a traduzir alguns sonetos antológicos de Shakespeare. Não imaginava que fazer uma simples tradução, sem metro nem rima, mas absolutamente fiel ao original, fosse um trabalho tão árduo. São os ossos do ofício... Mas o que eu queria salientar aqui é a semelhança que encontrei entre as imagens da primeira estrofe do soneto 73 e as de uma quadra que meu pai compôs, por solicitação de parentes, relativa à sua prima Olga, recém falecida, para constar numa pequena placa a ser afixada no túmulo da família Soares Gomes Munhoz, no Cemitério Municipal de Curitiba, onde ela foi sepultada. No primeiro quarteto daquele soneto, Shakespeare, ou a pessoa que fala no poema, se compara à estação do ano em que as folhas se tornam amarelas e caem, i.e. ao outono, e logo se refere ao frio, que faz certos galhos desfolhados tremerem, sugerindo assim a aproximação do inverno: That time of year thou mayst in me behold When yellow leaves, or none, or few, do hang Upon those boughs which shake against the cold, Bare ruin'd choirs, where late the sweet birds sang. Em português, os versos dizem: Aquela época do ano em mim tu podes ver Em que nenhuma ou poucas folhas amarelas pendem Desses ramos que tremem ao vento frio, Coros despojados, em ruínas, onde, tardios, doces pássaros cantavam. Por outro lado, na inscrição tumular está escrito: O inverno não alcançaste, Livre estás em pleno outono. Guarda, agora que acordaste, A lembrança do teu sono. A coincidência de imagens está na associação das fases da vida humana às estações do ano, a maturidade associada ao outono e o inverno à velhice, embora, no caso de Shakespeare, as estações não sejam mencionadas explicitamente, e sim indicadas pelos seus efeitos sobre a natureza. De todos os poemas que meu pai escreveu, este é o de que gosto mais. A autoria só é indicada pela letra "H" (de Herbert). Os dois últimos versos desse acróstico (que normalmente não são boa poesia) expressam toda a sua convicção religiosa, crente que era na imortalidade da alma. Para ele, quem morria acordava para a verdadeira vida (enquanto vivos, seríamos como pessoas que dormem, embrutecidas pela falta de luz, ou esclarecimento). Ambos os versos são muito humanos (e por isso belos) ao formularem o pedido para que Olga, a quem agora foi revelado o mistério da existência (e vive em outro patamar), não se esqueça daqueles que a amaram aqui na Terra, ainda presos a uma condição inferior.

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