quarta-feira, 8 de janeiro de 2014





 A PROPÓSITO DO "INFERNO", DE DAN BROWN

1. Do que trata?

O enredo de “Inferno” pode ser assim sintetizado. O geneticista Bertrand Zobrist, obcecado com o problema da superpopulação mundial  que cresce exponencialmente (v. abaixo, item 2), criou um vírus especial destinado a reduzir drasticamente a população do planeta, como consequência da sua propagação epidêmica pelo ar. É um “vírus-vetor”, que “insere informações genéticas na célula que está atacando e tem o poder de modificar o DNA humano”.

O cientista milionário contratou os serviços de uma organização secreta chamada Consórcio para lhe garantir privacidade absoluta em suas pesquisas, desenvolvidas particularmente, com o objetivo de criar aquele vírus. Somos alertados, nas páginas iniciais do livro, que essa organização secreta realmente existe, mas com outro nome, e tem escritórios em sete países...Também as informações relativas a arte,  ciência, história etc apresentadas ao longo do trabalho não são ficcionais.   

Zobrist é um aficcionado da “Divina Comédia”, que conhece profundamente. Seu laboratório, não por acaso, localiza-se em Florença, a cidade natal de Dante. Ele forneceu, antes de aí suicidar-se (acreditando-se um benfeitor da humanidade), uma série de pistas inspiradas na obra do poeta florentino sobre o local em que depositou o material que originará a epidemia em questão, pistas essas encaminhadas ironicamente à OMS- Organização Mundial de Saúde.  Essa entidade é muito criticada por ele e os adeptos de seu movimento transumanista pela sua omissão relativamente ao rápido crescimento populacional do mundo, do qual dependem todas as grandes questões ambientais do planeta. O agravamento desses problemas levará à extinção da espécie humana, antes que ela possa se aperfeiçoar pelas novas tecnologias da engenharia genética que já se vislumbram no horizonte da ciência. A ação do vírus de Zobrist  reduzirá a população mundial em mais ou menos um terço  (proporção verificada quando ocorreu na Europa medieval  a Peste Negra, no século XIV), o que daria tempo para que a humanidade se beneficiasse das novas tecnologias, que visariam o aperfeiçoamento da raça humana, objetivo do transumanismo. Essa é a justificativa para o procedimento de Zobrist, que não conta com o apoio da comunidade científica. Mas para ele o caminho que adotou é o mal menor entre as duas situações...

Por causa daquelas mensagens cifradas, a Dra. Elisabeth Sinskey, diretora da OMS, pede a cooperação de Robert Langdon, professor de Arte e Simbologia da universidade de Harvard, no que é atendida. Ele é o protagonista desse romance de suspense, e sua movimentação,  ao avançar na decifração das mensagens, premido pelo tempo, consiste no fio condutor da obra, cheia de reviravoltas e surpresas.

O livro inicia com Langdon  voltando a si num hospital de Florença, ferido e sem lembrar de nada do que aconteceu, sob os cuidados de uma jovem médica chamada Sienna Brooks. Mais tarde se verificará que tudo foi uma encenação (o atentado de que foi vítima, o assassínio do Dr. Marconi, colega de Sienna etc). Na realidade, ele está nas mãos dos partidários de Zobrist, ou especificamente, da Dra. Sienna Brooks, que contou com o apoio do Consórcio para concretizar aquela encenação. Assim, subentende-se que Langdon, após transferir-se para Florença a fim de auxiliar a OMS, foi sequestrado, para que não contribuísse com esta organização, considerada pouco confiável por Sienna, que quer localizar o material patogênico antes dela, a fim de destruí-lo, pois embora concorde com as ideias de  Zobrist discorda de seus métodos pouco ortodoxos...  Langdon passará o tempo todo na busca desse material e fugindo dos homens do agente Brüder, chefe da força de segurança a serviço da OMS, que na verdade não queria lhe fazer mal mas estava à sua procura para resgatá-lo de Sienna e do Consórcio e colocá-lo de novo a serviço da Dra. Elisabeth Sinskey... No final, dada a gravidade da situação, o próprio Consórcio muda de lado e passa a colaborar com a OMS.  Langdon juntamente com Brüder chegam ao local onde está o material patogênico na antiga basílica de Santa Sofia em Istambul praticamente ao mesmo tempo que Sienna Brooks, que adota outro caminho para ali chegar (após Langdon ser resgatado por Brüder, ele se separa de sua amiga, e é informado sobre quem é ela de fato...). Todos percebem que chegaram tarde demais. Há uma semana, o vírus vem sendo disseminado nos subterrâneos daquele edifício, numa caverna (ideal para a sua propagação) onde se realiza diariamente um concerto gratuito (patrocinado por Zobrist) para os inúmeros turistas de todas as partes do mundo que visitam Santa Sofia...  O programa único do concerto é a  “Sinfonia Dante”, de Franz Liszt... Há uma revelação quanto a esse vírus, que provocará no leitor a surpresa final, dentre as muitas surpresas que o livro contêm.  

2. O problema da superpopulação mundial

Conforme dados citados na p. 101-2 da edição brasileira de “Inferno”, a população do planeta evolui em progressão geométrica: durante toda a história da humanidade, só chegou a 1 bilhão de pessoas em 1800;  na década de 1920, passou para 2 bilhões; nos anos de 1970, passou para 4 bilhões. Em meados deste século, deverá atingir 9 bilhões. Para o livro, a superpopulação mundial fará com que vejamos o Inferno de Dante em nossas cidades. A população ideal, “para assegurar a sobrevivência a longo prazo da humanidade”, seria em torno de 4 bilhões;  já estamos em 7 bilhões (p. 105)

Para Zobrist, todos os grandes problemas ambientais contemporâneos são função de uma variável única: a população global do mundo. São estes os problemas citados:  demanda por água potável, aquecimento global, destruição da camada de ozônio, esgotamento de recursos oceânicos, extinção de espécies, concentração de gás carbônico, desmatamento e elevação do nível do mar  (p. 135-6)


3. Personagens principais:

-Robert Langdon- professor de História da Arte e Simbologia em Harvard
-Bertrand Zobrist- milionário, cientista, dono da máscara mortuária de Dante, que colocou à disposição do público no museu do Duomo, em Florença     
-Dra. Sienna Brooks- médica, tem 30 e pouco anos, é bonita, mas careca (pelo stress), usa peruca; tem uma personalidade problemática, alto QI, foi discípula e ex-amante de Zobrist;  demonstra afeição por Langdon, que chega a beijar na boca no final do livro
-Dra. Elisabeth Sinskey- médica, diretora da OMS; tem 61 anos, cabelos prateados; era estéril, quando jovem
-O diretor do Consórcio- seu nome não é citado
-Vayentha: mulher vestida de couro preto, ágil, corpo bem torneado, cabelos negros espetados, a serviço do Consórcio: é uma assassina que não era assassina, de fato, atirava com bala de festim
-Brüder e seus homens- integram uma força subordinada ao Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças; é uma equipe da SWAT “encarregada de conter graves riscos de saúde em larga escala”

3. Locais em que se desenvolve a narrativa: 

Florença, Veneza e Istambul. 
A ação inicia em Florença. Depois, à medida que a mensagem enigmática escrita no verso da máscara mortuária de Dante vai sendo decifrada por Langdon, a ação se transfere para Veneza e conclui em Istambul.  A menção a essas cidades dá oportunidade ao autor para fornecer informações interessantes sobre elas. Assim, são explorados aspectos de Florença, principalmente os relacionados à vida de Dante, que aí viveu até ser exilado.  São citados o Duomo (a catedral de Santa Maria del Fiore, onde está o afresco de Michelino que mostra Dante com a “Comédia”, tendo ao fundo imagens do Inferno, Purgatório e Paraíso), o Campanário de Giotto, o Batistério de San Giovanni (onde Dante foi batizado)  etc.  Langdon explica, en passant,  porque os batistérios são sempre octógonos...

Posteriormente, a ação se transfere para Veneza (o navio “Mendacium”, QG do Consórcio, navega em sua costa, no mar Adriático). Langdon se desloca para aí porque vai em busca do doge “que cortou cabeças de cavalos”, conforma a mensagem cifrada.  Mas acaba por constatar que não se trata de cavalos vivos e sim os da fachada da catedral de São Marcos, cujas cabeças foram cortadas para serem transportadas de Constantinopla para Veneza. Foi isso que determinou o  “traiçoeiro doge de Veneza”, i.e.  Enrico Dandolo, que conquistou a cidade em 1204 com a Quarta Cruzada.  E Langdon descobre então que o túmulo desse doge – referência para a localização do material patogênico -- não está em Veneza mas em Istambul, na antiga basílica de Santa Sofia, hoje um museu. O que provoca o deslocamento de Langdon para essa cidade, situada no entroncamento entre dois mundos, o europeu e o asiático. Descreve-se a  arquitetura desse edifício monumental, menciona-se o imenso Bazar das Especiarias, onde ocorre a perseguição de Sienna por Langdon etc   

4. Características da obra:

Trata-se de um thriller, de uma novela de suspense, este causado principalmente pela premência do tempo pois a solução do enigma proposto deve ocorrer antes que chegue uma data fatal e a epidemia se espalhe pelo mundo. Assim, a decifração desses enigmas, inspirados em Dante e sua “Comédia”, ocorre pouco a pouco, e isso mantém o interesse do leitor. Há muita semelhança aqui com o timing das realizações cinematográficas de Hollywood, sem a maestria de um Hitchcock, que, em vez de acumular reviravoltas e surpresas, dosava-as, na medida certa...  

O sentido mais profundo da associação do livro à primeira parte do poema de Dante é naturalmente metafórico. Dan Brown atualiza o inferno dantesco, associando-o ao caos previsível do mundo no futuro próximo, aos seus desastres imagináveis, todos causados pelo excesso de gente no planeta pressionando uma base limitada de recursos.  Uma população mundial que cresce num ritmo insustentável a longo prazo...  

O poema em si é lembrado pela citação de alguns versos ou por certas situações. E a vida de Dante, por alguns fatos, quando o protagonista visita determinados edifícios de Florença (o Batistério com sua imagem de satã que inspirou a do poema, a Igreja onde está o túmulo de Beatriz, a Casa de Dante etc). 

Características positivas:
A obra mantém permanentemente o interesse do leitor. De leitura fácil,  fornece muitas informações úteis (e verdadeiras, como é dito em suas páginas iniciais)
no campo das artes (literatura, pintura, escultura e arquitetura) e da história -- suscitadas pelas três cidades em que o enredo se desdobra -- e também, last but not the least, no campo das ciências, particularmente em genética humana...  Assim, alia ficção e realidade, uma característica marcante do autor (como o demonstram outros livros seus).

Características negativas:
Em primeiro lugar, devo destacar o artificialismo excessivo do enredo, destinado a prender o interesse do leitor mediano a todo custo, a exemplo do que ocorre com os filmes de muita ação e pouca reflexão. É verdade que “Inferno” tem o mérito de ser mais do que isso, pois ajuda aquele leitor a refletir sobre certas questões cruciais para o futuro do planeta. Mas alguém menos sensível ao suspense pode se perguntar: se o objetivo de Zobrist era disseminar o vírus na população, por que simplesmente não faz isso e depois comunica à OMS, sem ficar dando pistas enigmáticas de decifração difícil e trabalhosa sobre a localização do material que o contém? (é claro que nesse caso não teríamos o thriller...) A decifração exige convocar um especialista em Simbologia dos EUA, o qual, na condição de protagonista do livro, investigará nas três cidades em questão, correndo de uma para outra, à medida que progride na decifração dos enigmas, com o objetivo de localizar o material procurado e evitar a disseminação do vírus, o que acabará afinal acontecendo, porque a data fatal indicada por Zobrist em suas pistas é mal interpretada por Langdon e outros...  As pistas são difíceis de entender, inclusive por Sienna, a antiga discípula e ex-amante de Zobrist... Aliás, Zobrist, antes de morrer, deixou-lhe uma carta revelando como chegou até o vírus, suas características etc, que ela posteriormente queima para que ninguém fique conhecendo essa tecnologia perigosa para a humanidade, nem mesmo a OMS...

Outra característica negativa poderia ser o fato de que o livro, às vezes, dá a impressão de guia de viagem, escorando-se, para continuar mantendo o interesse do leitor, nas informações curiosas que apresenta sobre as principais atrações turísticas das três cidades onde se desenvolve a ação. Mas,  de qualquer forma, tais informações são sempre interessantes e bem vindas...

5. Conclusão:

Acredito que o autor e sua editora tenham alcançado o objetivo a que se propuseram:  produzir um livro destinado a ser best seller,  não uma obra de ficção primorosa.

O “Inferno” de Dan Brown não é obra de grande literatura principalmente pelo artificialismo das situações que, como as novelas de TV, apresentam excessivas reviravoltas e surpresas na narrativa, todas concebidas para garantir o interesse permanente do leitor mediano. Isso compromete a verdade humana de sua narrativa. É como se não bastasse fazer uma obra de ficção bem feita, e fosse necessário recorrer a outras áreas para dar mais substância a ela.   Todavia, a incorporação de informações de outras áreas funciona bem na narrativa.  Faz com que essa obra seja, além de diversão para aquele leitor mediano, uma oportunidade dele refletir sobre questões realmente cruciais para o mundo em que vivemos.  


Um comentário:

  1. Eu venci um debate em sala de aula sobre qual livro deveríamos fazer o trabalho proposto pela professora e Inferno era o que eu havia sugerido. Eu simplesmente me apaixonei pelo livro.
    O seu texto me ajudou muito a fazer o trabalho, mas o que me fez parar para comentar aqui foi a conclusão que você escreveu. Você falou com todas as letras tudo aquilo que eu não tinha percebido e que agora eu vejo que é realmente verdade. Não tinha como descrever melhor um livro e concluir um texto do que como você fez. Ficou incrível! E, mais uma vez, obrigada.

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