sábado, 29 de agosto de 2009

UM SONETO DE BAUDELAIRE




Vou me ocupar, neste artigo, de um poema de Charles Baudelaire, acrescentado à 3ª. edição (póstuma) das “Flores do Mal” e que já foi considerado o melhor soneto do Poeta (1). Aliás, o soneto foi a forma fixa que ele adotou para compor grande número de poemas daquela coletânea.
“Recolhimento” ("Recueillement") foi publicado pela primeira vez em 1861 e acredito que seja uma boa amostra da poesia baudelaireana. Segundo sua concepção, a poesia não tem outro objetivo senão ela mesma. Consiste numa atividade lúdica. Para ele, a poesia não está marcada pelo utilitarismo presente em todos os aspectos da sociedade capitalista, embora tivesse consciência dos novos tempos, da “perda da auréola” do poeta que, para sobreviver, também tinha que vender a sua “mercadoria” (cf. “La Muse Vénale”). Sua postura estética, por outro lado, serve de alerta a um certo tipo de engajamento poético, pois é sabido que um poema não se faz só com a apresentação de idéias nobres e altruístas: é preciso isso e alguma coisa mais ... que se chama poesia.
O soneto, composto em versos alexandrinos, é concebido como um monólogo, onde quem fala é o Poeta, dirigindo-se à sua Dor, um “alter ego” alegórico, na forma de uma mulher, amiga ou amante, a quem ele dá conselhos e mostra o entardecer.
Na primeira quadra o Poeta aconselha à sua Dor a ser bem comportada, e a ficar mais tranqüila. Chegou o entardecer que ela reclamava e já uma certa obscuridade envolve a cidade, “trazendo paz a uns, a outros, inquietude”.
Ele (sua Dor) se inquieta com o cair da Tarde devido aos impulsos dionisíacos e à atração da exploração do potencial de prazeres da noite, cuja vinda, por isso, é desejada. A Dor recebe então o conselho do v. 1, conselho dado pelo lado “sage”, apolíneo, do Poeta, aquele que fica em paz no entardecer e, no seu recolhimento, constata, distante, como se isso não lhe dissesse respeito também, a divisão das pessoas nessas duas categorias – as que ficam inquietas quando anoitece e as que não ficam.
Trava-se assim um conflito interior no artista (como todo homem vítima do pecado original, na concepção baudelaireana), dividido entre a Matéria e o Espírito, entre o Mal e o Bem, entre o Diabo e Deus, tensão presente em muitos poemas das “Flores do Mal”, marcados por profundo sentimento de religiosidade, onde o satanismo nada mais é do que um disfarce, de quem quer entrar no cristianismo pela porta dos fundos, como disse T.S.Eliot (2).
Há um outro aspecto nessa estrofe que merece menção: trata-se da referência à cidade (v.3). Baudelaire, como precursor da modernidade, é um poeta urbano, o que é ilustrado pelos “Tableaux Parisiens”, uma das seis seções em que se divide a sua obra principal. A cidade é o “locus” privilegiado de seus poemas e até mesmo as transforamções urbanísticas da Paris do Segundo Império estão neles registradas (cf. “Le Cygne”).
Na segunda quadra do soneto, o Poeta pede para a Dor dar-lhe a mão e vir para junto dele, afastando-se da “multidão vil dos mortais, que sob o chicote do Prazer –esse carrasco implacável – vai colher remorsos na festa servil”.
A multidão aqui é encarada como elemento hostil, embora isso nem sempre ocorra na poesia de Baudelaire, como assinalou Walter Benjamin (3): ela é normalmente intrínseca à sua poesia, é ela que proporciona a visão fugaz da adorável mulher de luto em “À une Passante” ou o motivo humanista para “Les Petites Vieilles”. Em “Recolhimento”, como uma decorrência do próprio tema, a multidão aparece apartada do Poeta, e digna de desprezo, o mesmo desprezo que a parte nobre de si (imortal) confere ao seu lado inferior (mortal), que se inclina para o mal e o pecado, conforme a sua visão de mundo.
Vão os mortais, então, subjugados pelo Prazer (cf. a maiúscula alegorizante), para a “festa servil”, digna de servos e não de senhores, festa dos prazeres vulgares, da mesa e da cama, que produzirão posteriormente remorsos, ou seja, a reprovação da consciência moral (o remorso foi associado, em outros poemas, à imagem do verme, “nutrindo-se de nós como o verme dos mortos”, conforme “L’Irréparable”). O Poeta constata, desse modo, a busca desesperada do Prazer, própria da condição humana, destinada a abrandar a sua miséria: já no poema-prefácio ao seu livro, refere-se a tal busca, comparando o prazer, que “nous pressons bien fort”, a uma laranja, e o homem, nessa busca insaciável, a um pobre devasso que “beija e suga o seio martirizado de uma velha prostituta” (cf. “Au Lecteur”, quinta estrofe).
Por outro lado, a alegoria do Prazer, com seu chicote, açoitando os “mortais”, pode sugerir relacionamento sado-masoquista que, mais sutilmente, está presente, ao menos quanto ao aspecto do sadismo, em alguns poemas das “Flores do Mal”. Também aí se aborda o lesbianismo, um dos motivos para o processo que lhe foi movido à época de seu lançamento.
O Poeta procura assim superar a sua própria condição, distanciando-se dos seus semelhantes e tornando-se senhor de sua própria liberdade ao rejeitar os prazeres aos quais está, pela natureza (a do pecado original), condicionado, a fim de encontrar-se com a sua dimensão mais nobre na solitude e no recolhimento.
Destaque-se uma particularidade nessa passagem do soneto: a mudança de ritmo do v.8 em relação aos precedentes, com o objetivo de salientar a separação, que se quer ver aprofundada, entre sua Dor, que ele chama a si, e a “multidão vil dos mortais”, o que fica bem evidenciado pelo “enjambement” aí presente.
Nos dois tercetos, o Poeta pede, no seu recolhimento, para a Dor ver: a) os Anos passados (“Années”, palavra feminina em francês, o que permite essa personificação) debruçarem-se nas varandas do céu, em vestidos antiquados; b) surgir do fundo das águas a Saudade sorridente; c) dormir, debaixo de uma arcada, o Sol moribundo; e pede para ela ouvir a suave Noite que caminha, após comparar esta com uma ampla mortalha arrastada no Oriente.
Desse modo, o recolhimento, levando o Poeta à auto-consciência e às questões mais fundamentais, que não são normalmente levantadas na convivência social, suscita nele, como uma decorrência natural, a evocação de seu passado -- materializada pela imagem das damas (“les Années”) debruçadas nas sacadas do céu, em vestidos fora-da-moda -- , do que resulta vir à tona, em seu íntimo, o sentimento (doloroso) associado a certas vivências pessoais e o pesar pela passagem do tempo, enfim a Saudade, que aflora à superfície com seu sorriso consolador.
A Dor também é solicitada a ver o Sol moribundo se aninhar sob uma arcada ou, mais precisamente, sob um “arco de ponte” ( “arche” também tem esse significado em francês, segundo os dicionários). Compara-se assim o Sol se pondo ao vagabundo que se aninha debaixo da ponte para dormir. Essa é mais uma imagem de nítida inspiração urbana presente na obra.
A Dor foi solicitada a ver, nos versos anteriores, em que se criam elementos plásticos destinados a proporcionar uma equivalência visual à memória do passado e ao sentimento da saudade. Essa ênfase, aliás, quanto ao aspecto plástico é uma das características mais marcantes da poesia de Baudelaire (recorde-se que ele foi também crítico de arte). No último verso, celebrado por sua beleza, a Dor é solicitada a ouvir a Noite avançando. A sinestesia, i.e., a relação subjetiva entre diversas percepções dos sentidos, é outra característica baudelaireana, que a ela recorre freqüentemente. Conforme seu famoso soneto “Correspondances”, fundamental para o Simbolismo (4), “les parfums, les couleurs et les sons se répondent”, expressando assim uma harmonia universal existente neste mundo, reflexo do outro, de modo que aos perfumes, por exemplo, corresponderiam cores e sons. Assim, Baudelaire embaralha intencionalmente os sentidos da audição e da visão, no último verso, produzindo com isso uma rica e sugestiva impressão poética.
Verifica-se, nos tercetos, uma progressão do mundo interior (a evocação do passado, a saudade) para o exterior (o pôr-do-sol, a noite). Ao mesmo tempo, à melancolia decorrente da consciência da passagem do tempo vai se associando, imperceptivelmente, a idéia de morte – uma das obsessões das “Flores do Mal” – à qual está ligada a imagem da Noite (5). É interessante destacar que alguns vocábulos empregados nos tercetos já possuem uma conotação fúnebre, preparando o clima para o verso final: “défuntes” (defuntos, v.9), “moribond” (= moribundo, v.12) e “linceul” (= mortalha, v. 13). A Dor (o Poeta) reclamava o anoitecer – promessa de prazeres – e eis que a Noite se aproxima. O desejo de morte do Poeta será atendido em breve, pois sua vida, como a de todos os homens, está marcada pelo signo da efemeridade.
Por outro lado, os elementos da natureza que estão presentes também contribuem para preparar a ambientação do último verso. Nos tercetos, ocorrem referências a “ciel” (= céu, v.10), “eaux” (= águas, v. 11) e “Soleil” (= Sol, v. 12), antes de menção à “Nuit” (= Noite), no v.14.
Ainda uma observação a respeito do verso final. Como assinala Guilherme de Almeida (6), Baudelaire, ao repetir “entends” no último verso, visa alongá-lo, a fim de sugerir o caminhar vagaroso da Noite. Além disso, acrescento eu, a utilização de uma “rime féminine” (“marche”), em que há uma sílaba átona após a décima-segunda sílaba do alexandrino, reforça a idéia de que a Noite ainda não chegou inteiramente, de que está chegando, produzindo-se assim sugestão de continuidade.


(1988)

NOTAS

(1) Baudelaire- “Les Fleurs du Mal”- poèmes choisis présentés par Marcel Galliot- Librairie Marcel Didier, 1961- p.91. O soneto é o seguinte, em sua versão orginal e respectiva tradução para o português:





RECUEILLEMENT

Sois sage, ô ma Douleur, et tiens-toi plus tranquille.
Tu réclamais le Soir; il descend; le voici:
Une atmosphère obscure enveloppe la ville,
Aux uns portant la paix, aux autres le souci.

Pendant que des mortels la multitude vile,
Sous le fouet du Plaisir, ce bourreau sans merci,
Va cueillir des remords dans la fête servile,
Ma Douleur, donne-moi la main; viens par ici,

Loin d’eux. Vois se pencher les défuntes Années,
Sur les balcons du ciel, en robes surannées;
Surgir du fond des eaux le Regret souriant;

Le Soleil moribond s’endormir sous une arche,
Et, comme un long linceul traînant à l’Orient,
Entends, ma chère, entends la douce Nuit qui marche.
Charles Baudelaire, 1861

RECOLHIMENTO

Sê sábia, ó minha Dor, e fica mais tranqüila.
O Entardecer que tu pedias já está aí:
Uma incerta penumbra cai sobre a cidade,
Trazendo paz a uns, a outros, inquietude.

Enquanto a multidão mesquinha dos mortais,
Sob o chicote do Prazer – esse algoz frio,
Vai colher só remorsos na festa servil,
Minha Dor, dá-me a mão; vem p’ra cá, longe deles.

Observa debruçarem-se as Horas defuntas
Nas varandas do céu, em vestidos de outrora;
Surgir das águas fundas a Saudade, sorrindo;

Dormir, sob uma arcada, o Sol agonizante,
E, como ampla mortalha arrastada no Oriente,
Ouve, querida, a suave Noite que vem vindo.

(tradução: Domingos van Erven)

(2) Baudelaire, Charles- “As Flores do Mal”- trad., introd. e notas de Ivan Junqueira- Ed. Nova Fronteira, 1985, p. 64

(3) Benjamin, Walter- “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” in “Os Pensadores”- Abril Cultural, 1980- p. 38

(4) Baudelaire- “As Flores do Mal”- trad., introd. e notas de Jamil Almansur Haddad- Abril Cultural, 1984- p. 43

(5) “Baudelaire”- Classiques Larousse- avec une Notice biographique, une Notice historique et littéraire, des Notes explicatives etc par A. Cart e S.Hamel- p. 60; cf. também Lagarde, A. e Michard, L.—“XIXe. Siècle”- Bordas, 1983- p. 449

(6) Almeida, Guilherme de- “Flores das Flores do Mal”- introd. de Manuel Bandeira- Ed. de Ouro, 1965, p. 163

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