sábado, 29 de agosto de 2009

OS RICOS SÃO DIFERENTES DE NÓS?


“The Great Gatsby”, lançado em 1925, é considerado geralmente como o melhor livro de F.Scott Fitzgerald (v. foto). Trata-se, de fato, de uma obra-prima, que nos permite conhecer um pouco a sociedade americana da década de 1920, especialmente a alta burguesia, o mundo de Gatsby, Daisy e Tom Buchanan, e também, indiretamente, o daqueles que dependem de seu trabalho para viver, representado por Wilson, que tem uma oficina mecânica de beira de estrada, naquilo que o autor chama, expressivamente, de “vale das cinzas”.


Para além dos aspectos externos dos “roaring twenties”, visíveis nos signos de modernidade (ver, por exemplo, a importância do automóvel na novela) e nas festas colossais promovidas por Gatsby nos jardins de sua mansão, ao som de muito jazz, perdura a tensão entre aqueles dois mundos. Ela se encontra latente no relacionamento entre Tom e Wilson, na arrogância de um e na atitude subjugada e dependente do outro, que será mais marcante para o leitor ao saber que Wilson é enganado pela mulher, Myrtle, amante de Tom. A revolta de Wilson só se concretizará, assim, em função de seu drama pessoal: equivocado, assassinará Gatsby (e em seguida se matará) por atribuir a este a autoria do atropelamento e morte de sua esposa. Mas quem de fato dirigia o luxuoso carro amarelo de Gatsby não era este e sim Daisy, que não pára no local do acidente e nem assume a sua parcela de responsabilidade por ele, deixando, por omissão, que Gatsby assumisse inteiramente a culpa.

Gatsby, desse modo, é vítima das circunstâncias sobre as quais não tem controle, que o dinheiro (abundante) que possui não compra, embora compre muitas outras coisas, como aquelas destinadas a impressionar Daisy e para mostrar a si mesmo que ele agora é rico e possui o mesmo “status” social dela, o que não ocorria quando travaram conhecimento. Não importa aqui a origem suspeita dessa fortuna (pois ela resultava, seguramente, do comércio ilegal de bebidas, durante a Lei Seca); afinal todas ou a maioria das fortunas têm origem questionável do ponto- de- vista ético. Para ele, o que importa é o sonho que alimenta há cinco anos e condicionou todas as suas ações nesse período, que faz “o mundo material ser real”. E quando esse sonho acaba, quando Gatsby percebe que não pode mais repetir o passado, não há mais razão para que ele continue existindo, como disse um crítico. Assim, a morte desse homem que alcançara o sucesso representa, ao mesmo tempo, um fracasso: o do sonho americano, que só acredita na acumulação material crescente como fonte de felicidade pessoal.

Essa é a concepção no mundo de Daisy, de Tom e de todos aqueles notáveis das colunas sociais que freqüentavam, numa busca desesperada de prazer, as festas de Gatsby mas que não comparecem ao seu enterro, o que causa a indignação de Nick, o único a comparecer, juntamente com o pai do falecido, e alguns mais. Nem mesmo Daisy comparece, nem manifesta, de alguma forma, o seu pesar, se é que ele existe. Aliás, essa personagem é enigmática (como a Capitu, de Machado), embora fique claro que ela é um produto de sua própria classe social: a sua frivolidade, a sua inconseqüência, a sua falta de substância humana são aspectos coerentes com a teoria de Fitzgerald de que “os ricos são diferentes de nós” (ao que Hemingway teria respondido, jocosamente: “sim, têm mais dinheiro do que nós”). Daisy, cuja voz é caracterizada por Gatsby como “full of money”, expressa bem o profundo tédio, decorrente da faustosa ociosidade dos membros de sua classe, quando afirma: “What’ll we do with ourselves this afternoon? (...) and the day after that, and the next thirty years?”. Por outro lado, já no final da novela, depois que tudo aconteceu, o narrador comenta: “They are careless people, Tom and Daisy – they smashed up things and creatures and then retreated back into their money or their vast carelessness, or whatever it was that kept them together, and let other people clean up the mess they had made…

A estrutura formal da novela concebida por Fitzgerald é a mais adequada para a história que quer contar: a adoção de um narrador, que se debruça sobre os fatos do passado recente, suscita um interesse crescente por aquela figura singular, misteriosa, apresentada aos poucos, inicialmente pelas histórias que circulam a seu respeito. Esse recurso técnico funciona adequadamente para contar a tragédia desse sonhador que viveu num mundo excessivamente prosaico e que só era efetivamente compreendido pelo seu amigo e vizinho. Há uma passagem em que Nick afirma ser Gatsby “melhor do que todos os outros juntos” e esse é o único elogio que, em vida, lhe fez o narrador da história, convicto, apenas no final, da sua qualidade humana e moral. Era um sujeito riquíssimo e no entanto solitário; de origem humilde, ascendeu socialmente mas não se integrou, de fato, à nova classe a que tivera acesso, por ser, sua natureza, muito diferente da dos outros integrantes dessa classe.

É curioso salientar que são justamente os únicos homens apaixonados da novela (Gatsby e Wilson) aqueles que morrem, como a mostrar, simbolicamente, que a realidade em que vivem é incompatível com o sonho.

Toda essa história é contada numa linguagem muitas vezes poética, de rara beleza, como quando Wilson se aproxima da casa de Gatsby e é identificado com a Morte, após o desencanto de Gatsby com Daisy: haveria agora “a new world, material without being real, where poor ghosts, breathing dreams like air, drifted fortuitously about... like that ashen, fantastic figure gliding toward him through the amorphous trees.” Um outro exemplo da qualidade de sua prosa ocorre quando descreve, com muita delicadeza, algumas meninas brincando, ao por-do- sol, “gathered like crickets on the grass.”

Um aspecto a destacar ainda diz respeito ao simbolismo de certos elementos da história como os “olhos do Dr. T.J.Eckleburg” (um “out door” abandonado, anunciando óculos), que para Wilson são os olhos de Deus, “que tudo vê”, presentes permanentemente no “vale das cinzas”, que por sua vez tem toda uma carga simbólica, associada à própria condição humana. O mesmo ocorre com a “luz verde”, na extremidade do ancoradouro, próximo à casa de Daisy, do outro lado do estreito, que é freqüentemente observada por Gatsby, à noite, e simboliza todas as suas aspirações e planos para o futuro, jamais realizados.

Percebe-se assim que o livro tem muito mais a oferecer do que a sua banalização televisiva ou cinematográfica permitiria supor. Trata-se de uma obra fundamental na literatura americana do século XX, que todas as pessoas sensíveis à beleza literária não podem desconhecer.

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