terça-feira, 15 de junho de 2010

EMILIANO PERNETA É UM GRANDE POETA?



A edição fac-similar de “Joaquim”, lançada, há alguns anos, pela Imprensa Oficial do Estado, permite-nos a leitura do famoso artigo de Dalton Trevisan (então com 21 anos e diretor-proprietário daquela revista), intitulado “Emiliano, poeta medíocre”, em que nega qualquer valor à poesia de EP (1866-1921), contestando frontalmente a opinião consensual do meio literário paranaense da época.


O artigo, que apareceu no número 3 da revista, em junho de 1946, reagia ao movimento em curso naqueles anos, promovido pelos admiradores de EP, destinado a revalorizá-lo e projetá-lo nacionalmente. Em 1945 publicam-se os dois volumes das “Poesias Completas” pelo editor Zélio Valverde, do Rio de Janeiro, e em Curitiba Gerpa-Grupo Editor Renascimento do Paraná publica um refinado ensaio de Erasmo Pilotto sobre o poeta, além da “Prosa” de EP, compilada pelo mesmo Erasmo, que aliás colaborava com Dalton na direção de “Joaquim”.


Erasmo, em seu estudo, considera EP “um poeta imenso”. Para ele, após o lançamento de “Ilusão” (1911), EP “é um poeta novo dentro do Brasil, uma nova vibração”. O livro continha “uma poesia que ainda não se tinha ouvido entre nós, assim tão clara, tão dionisíaca, tão luminosa, tão intensa, tão fresca e tão alada”.


O artigo de Dalton foi republicado, com alterações, cinco anos mais tarde na “Gazeta do Povo”, edição de 17 de junho de 1951, com o título “Emiliano, poeta perneta”, de onde extraio as citações abaixo (as alterações realizadas revelam uma opinião mais desfavorável com relação ao poeta). Para Dalton, a “mística de Emiliano” aqui existente era um equívoco. E a geração daqueles moços de então não queria nutrir-se de equívocos que a afastassem “da rua dos homens”. Para ele, a poesia de EP é artificial, falsa, “uma poesia de casinha de chocolate, onde quem passa a língua sente o gosto amargo da mentira”. Em sua opinião, Emiliano não fez “poesia essencial”. Situa-se “nos antípodas da verdadeira poesia e cujos versos chinfrins mais nos distanciam do coração quente da vida. Os seus temas, sem nenhum sentido ecumênico, são artificiais como florinhas coloridas de papel/.../ Em outro passagem, Dalton fala das suas “imagens do dicionário grego-latino”. Para ele, EP era homem ressentido que “escreveu versos não para trazer uma nova luz ao coração dos homens” e sim para se vingar do mundo./.../ De uma inspiração rasa como capim /.../ quando ia atrás da luz do sol fechava as janelas e acendia um fósforo. Falta céu e amor na sua poesia” etc


À parte os possíveis méritos que a atitude do jovem iconoclasta poderia conter, rompendo com o passado para dar lugar à modernidade na literatura paranaense, ela teve pelo menos uma conseqüência negativa: a de levar as novas gerações a menosprezar a obra de um poeta que vale a pena ser lido e estudado, não só por ser nosso, refletindo, à sua maneira, o modo de pensar e de sentir do nosso meio social, mas por ter composto alguns poemas realmente notáveis, tais como “Salomão”, “Vencidos”, “Nox”, “Baucis e Filemon”, “Azar”, “Cavaleiro” e “Última volúpia”, além daqueles citados ao longo deste artigo.


Trevisan, com o passar do tempo, tornou-se um escritor de prestígio nacional, e devido à opinião crítica dele -- embora meramente impressionista -- muitos devem ter descartado “in limine” a obra de EP, dando por resolvida uma questão sobre a qual não há consenso entre os nossos melhores escritores. Afinal, Emiliano Perneta é, ou não é, um grande poeta?


Além de Dalton, cuja opinião é analisada mais adiante, também se manifestaram contra ela Manuel Bandeira, que na introdução à “Antologia da Poesia Brasileira- Fase Simbolista”, considerou a poesia de EP prejudicada pelo nefelibatismo da escola (mas Bandeira só considerou o EP “simbolista”, coerente com o seu propósito de preparar aquela Antologia, e sabemos que apenas uns vinte poemas dos cento e tantos de “Ilusão” são “cabalmente simbolistas”, como afirmou Andrade Muricy, reconhecida autoridade no assunto. “Ilusão”, que abrange poemas elaborados, em sua maioria, entre 1897 e 1911, é esteticamente eclético, e reflete a evolução por que passou a sensibilidade do poeta). Otto Maria Carpeaux (que foi colaborador de “Joaquim”) afirma, na “Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira”, 1a. ed.,1949, que EP “não conseguiu vencer os preconceitos parnasianos. Mas os esforços de reabilitação, da parte de seus conterrâneos paranaenses, tampouco convenceram até hoje os de fora”.


Do lado das opiniões favoráveis, Péricles Eugênio da Silva Ramos acha que ele pode “figurar, sem favor, entre os nossos mais típicos e notáveis decadentes e simbolistas”. Massaud Moisés afirma que EP “conseguiu criar poesia de superior beleza, dentre as mais bem acabadas de todo o nosso movimento simbolista”. Alfredo Bosi contradiz Manuel Bandeira ao afirmar que “Os sestros da escola, apesar de numerosos, não abafaram em Emiliano Perneta a nota pessoal, expressionista/.../ Para Bosi, a poesia de EP, “lida e valorizada por poucos, espera um estudo analítico à sua altura”. Wilson Martins considera o poema “Para que todos que eu amo sejam felizes” “um dos mais belos de nossa literatura, e poucos haverá mais belos, de mais pungente e harmoniosa beleza do que ‘Sombra’ ” (poemas esses, aliás, que nada têm do nefelibatismo simbolista...). E na opinião de José Guilherme Merquior, EP, com B.Lopes, é um dos dois principais decadentes “de real interesse” da literatura brasileira. Ademais, refere-se elogiosamente à sua poesia, conforme citação abaixo. Dispenso-me de citar opiniões de Andrade Muricy e Tasso da Silveira, altamente elogiosas, porque seriam consideradas suspeitas, haja vista a afeição quase filial que os unia a EP.


Concentrando-me agora na crítica de Dalton -- porque é aí onde a opinião contrária à poesia de EP se encontra exposta de forma mais sistematizada --,em primeiro lugar ela é condenada porque seria desligada da vida, “da rua dos homens”, distante do “coração quente da vida”. Ela seria elitista, “torre de marfim”, anti-humanista, em suma. EP, de fato, se orgulha em buscar isolar-se da “multidão”, i.e. dos “bárbaros” -- habitantes de Curitiba, de Minas Gerais (onde morou por um certo tempo) ou de qualquer outro lugar. E quem são os “bárbaros” para ele? São os indivíduos não movidos pelo ideal, pela busca do bem e do belo, objetivo único do cavaleiro-artista empenhado no “bom combate”... Não será então uma atitude humanista criticar tais indivíduos, que vivem em condição degradada, aquém do seu potencial humano, chafurdando no “lodo” da vida mesquinha (voltada para a busca do dinheiro e do poder), sem aspirar às “estrelas”...? E o fato de EP demonstrar a maior simpatia pelas pessoas humildes, elogiando a vida simples da aldeia “(cf. “Solidão” I a V), e o trabalho do lavrador (na serena “Oração da noite”, que Brasílio Itiberê II musicou, ou no belo poema “Setembro”), não o aproxima do “coração dos homens”?


Relativamente ao artificialismo de sua poesia, a questão se relaciona à concepção estética adotada. Para EP (em seu livro “Alegoria”, de 1903), o ideal “é que a beleza fosse, mas como um astro, que vivesse da sua própria luz. Assim, uma estátua nunca era bela, porque se parecesse com Laís, mas Laís é que poderia ser bela, por parecer-se com uma estátua”. O artista, para EP, deve buscar conscientemente o artifício (“Ars artificium est”). Ele busca a Beleza, que “não é mais do que uma Ilusão!”. O objeto de sua atividade criadora é produzir, com as palavras, determinados efeitos na sensibilidade do ouvinte/leitor, assim como o mágico (o ilusionista) visa a produzir no seu espectador. Em decorrência dessa concepção, ou filtrada por ela, a paisagem e o homem da nossa terra não aparecem explicitamente nos poemas (com a única exceção do soneto “Iguaçu”). Aparecem transfigurados, transpostos para outra realidade, normalmente a da mitologia greco-latina ou a dos tempos bíblicos... O fato de ser artificial não exclui a verdade, na poesia. É o que ocorre quando EP usa o artifício da mitologia. Quando aborda, com muita vivacidade, os temas e personagens mitológicos (sem nada de “ranço clássico”, como assinalou Péricles Eugênio da Silva Ramos), ele está incorporando, em sua poesia, a verdade que o mito encerra. De qualquer forma, se considerarmos a cronologia dos poemas, como quer Cassiana Lacerda, verificaremos uma evolução no sentido do maior despojamento formal, e do menor artifício, à medida que o tempo passa...embora se acentue o caráter religioso, ou cristão, dessa poesia, o que também contribui para a sua rejeição, por parte de quem não compartilha da visão de mundo idealista de seu autor. Mas se isso for motivo para desqualificar um poeta, Dante – o maior de todos --, também o seria...


É falso dizer que a poesia de EP é sombria, que o poeta é um ressentido contra o mundo e não oferece perspectivas ao leitor, especialmente aos jovens, os quais “em vez de trilhar seu caminho fechado” deveriam tomar “as estradas alegradas de sol”. Também Bosi refere-se ao “cupio dissolvi” de EP, para ele um poeta tomado pelo desejo intenso de conhecer o próprio fim (mas o desejo intenso de EP não é o de morrer, e sim, como o de todo espiritualista, o de integrar-se ao “outro mundo”, que seria a “pátria verdadeira” para o exilado neste mundo. Como disse Tasso da Silveira, EP é “poeta de evasão”, mas não “de consumpção”...).


É verdade que o “tédio” está presente nos poemas, decorrência do descontentamento com a realidade dominada pelos bárbaros e da ânsia pela “pátria verdadeira”. Mas o poeta indica, como saídas para superar tal condição (ou meios de evasão), “o sonho” (da arte, do ideal), as festas, as viagens (no limite, a morte, a viagem final) e, “last but not the least”, a mulher, ou o amor sensual. Se acrescentarmos a Natureza e a religião ou o amor espiritual (cristão), essas são as principais áreas temáticas da poesia de EP.


Assim, não procede a afirmativa de que “Falta céu e amor na sua poesia”. Alguns de seus melhores poemas (“Versículos de Sulamita”, “Esse perfume”) e versos (“Tarde de olhos azuis e de seios morenos”- cf. a sinestesia) são justamente os que envolvem a sensualidade amorosa. J.G. Merquior, por isso, afirmou que “Perneta é antes de tudo um bom lírico erótico”. Se isso for verdade, como aceitar que falta vida à poesia de EP? O que há de mais vital do que o amor e o sexo? Aliás, Nestor Vítor – o crítico do Simbolismo brasileiro – já salientara esse aspecto da poesia do autor de “Ilusão”. Nesse particular, ele se distinguiria de seu (nosso) amado Baudelaire, que muito o influenciou, pelo caráter ardente e tropical – bem brasileiro portanto – de seus versos lírico-eróticos. Assim, pelo menos esse tipo de abordagem EP acrescentou ao simbolismo francês ... ao contrário do que afirma Dalton, para quem foi nula a contribuição de EP ao simbolismo, “apenas transportando para a nossa língua o figurino da escola”.


Para concluir, devo dizer que a crítica de Dalton dá pouca importância ao modo como EP se expressa nos poemas. Para alguns, como Paulo Leminski, essa questão é fundamental. Lembremo-nos da sua definição de poesia: “a liberdade da minha linguagem” (aliás, não conheço nenhuma declaração de Leminski sobre EP. Dentre os nossos poetas do passado, foi Dario Vellozo quem despertou nele maior interesse).


E como é a linguagem de EP? Ela pode apresentar-se como simbolista/nefelibata ou linguagem que usa um português arcaico ou linguagem direta, espontânea (chegando a ser até coloquial, algumas vezes) ou linguagem religiosa, semelhante à de uma ladainha. Apesar de usar as formas fixas e os versos metrificados e rimados (mas adotando liberdades formais, para adequar-se às suas necessidades estéticas), é uma linguagem musical, que prefere a eufonia a ajustar-se rigidamente aos padrões da versificação. Não faz somente o uso instrumental das palavras, para expressar as suas metáforas e comparações. Faz também uso estético dos fonemas que compõem as palavras, como é o caso do uso dos sons sibilantes em “Solidão”. Além disso, emprega freqüentemente a sinestesia (evocação de impressões sensoriais), o que contribui para dar aos seus versos um caráter bastante pessoal. Dalton, embora reconheça a “suficiência de sua expressão melódica”, critica a sua inspiração. De fato, muitas vezes ele explora imagens convencionais, como por exemplo a oposição estrelas/lama, a associação de “embarcar” com a viagem final (a morte) ou a identificação da luz com o plano superior do espírito. Mas deve-se entender isso apenas como um ponto de partida. É no desenvolvimento do poema que se encontrará a sua contribuição mais significativa, como se nota em “Versos para embarcar” ou “Sol”, duas das melhores realizações dessa poesia.

OBS- quem tiver interesse em conhecer mais a produção poética de Emiliano Perneta poderá agora adquirir o livro "A poesia de Emiliano Perneta", de Domingos van Erven, no link https://www.agbook.com.br/book/138402--A_POESIA_DE_EMILIANO_PERNETA

2 comentários:

  1. Adorei ler mais sobre Julieta Soares Munhoz, essa é uma parte da história que me interessa.Um algo que parece esquecido ou nâo?

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  2. Prezado Domingos:

    em atenção a um trecho desta sua ótima postagem ("aliás, não conheço nenhuma declaração de Leminski sobre EP"), colo aqui um trecho do meu projeto de pesquisa de doutorado:

    "ao pesquisar a vida e obra de Leminski, nos deparamos com a seguinte declaração, numa entrevista de 1978 ao jornalista Almir Feijó, para a revista Quem [Leminski responde uma questão sobre sua visão a respeito de Dalton Trevisan]:

    [...] quando o Dalton surgiu no cenário curitibano, ele se afirmou atacando Emiliano Perneta. A primeira coisa que Dalton fez, quando surgiu no cenário literário curitibano, foi atacar a marca líder, como se diz em propaganda, que era Emiliano Perneta, num artigo chamado: “Emiliano, um poeta perneta”. E, assim como Dalton começou atacando Emiliano Perneta, eu acredito que, sem saber na época dessas coisas, comecei de certa forma atacando Dalton Trevisan. Agora, Dalton estava errado. Emiliano é um grande poeta. Pode ser que eu esteja errado. (LEMINSKI, 1988, p. 16. – grifo nosso.)

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