quarta-feira, 16 de junho de 2010

JULIETA SOARES GOMES







Ela nasceu em 1866 na província de Santa Catarina, provavelmente naquela mesma Desterro, atual Florianópolis, onde seus pais se casaram em 20 de outubro de 1864.

O pai era um comerciante português chamado Manoel Soares Gomes, nascido no Porto em 1829. Ele contava, portanto, 37 anos quando Julieta nasceu. Já havia morado antes no Paraná, em Antonina, pois foi ali que nasceu, em 1854, seu filho Teófilo, fruto do primeiro casamento, com Maria Gonçalves Moraes, também nascida em Santa Catarina.

Teófilo destacou-se na nossa história política. Foi prefeito de Antonina, deputado estadual várias vezes e chegou a ser aclamado governador do Estado em Paranaguá, quando os federalistas ocuparam a cidade em 1894. Eles o libertaram da prisão (estava preso por ter liderado o movimento em terra, pouco antes da chegada da esquadra do almirante Custódio de Melo).

Além disso, ocupa um papel importante na história do teatro paranaense. Foi considerado por Tasso da Silveira o “fundador da literatura dramática no Paraná”. Como autor dramático, suas peças foram elogiadas pelo Conservatório Dramático Brasileiro, do Rio de Janeiro.

Era também industrial, proprietário de um engenho que beneficiava arroz em Antonina.

Quando Teófilo, meio-irmão de Julieta, nasceu, o pai deles, Manoel, contava 25 anos de idade. Não sei com que idade emigrou para o Brasil, mas seguramente foi mais um dos portugueses jovens que vieram para cá em meados do século 19 a fim de “fazer a América”...

A mãe de Julieta chamava-se Rita Adelaide Coutinho e era também natural de Santa Catarina, onde nasceu em 1838. Casou-se com Manoel Soares Gomes aos 26 anos. Coutinho é nome de antiga família portuguesa, e os genealogistas constatam a sua presença no Rio de Janeiro já nos séculos XVI e XVII. Porém, as origens dessa família na Ilha de Santa Catarina podem estar também relacionadas à vinda dos imigrantes açorianos, ocorrida no século XVIII.

O nome dado à única filha do casal (que teria ainda dois filhos homens -- Franklin e Edmundo) revela bom gosto literário por parte de quem o escolheu pois é imediatamente associado à peça de Shakespeare – “Romeu e Julieta”. Manoel, apesar de homem de negócios, poderia ser um interessado em arte, gosto que teria transmitido ao filho Teófilo, dramaturgo. Além disso, sabe-se que Julieta gostava de ler romances e estudou canto lírico. E Franklin, seu irmão, nascido no Rio de Janeiro em 1872, dedicar-se-ia profissionalmente à fotografia.

A informação sobre a cidade natal de Franklin nos indica que Manoel, nos primeiros anos da sua (segunda) vida de casado, deve ter se mudado com a família para o Rio, a fim de explorar as potencialidades comerciais da capital do Império, cidade que já devia conhecer, pois certamente entrou no Brasil pelo Rio de Janeiro. Mais tarde, contudo, ele se estabeleceria definitivamente em Curitiba. Em 1879, já o encontramos aqui como comerciante de farinha de trigo. Ele se tornaria um dos principais comerciantes da Curitiba do final do século 19, conforme atestam algumas fontes que consultei. Em 1889 sua casa comercial, localizada na praça Tiradentes, lidava com produtos importados dos Estados Unidos (máquinas à vapor, instrumentos de lavoura, artigos de ferragem, máquinas de costura, mobílias, louça, porcelanas, cristais etc). Naturalmente, sua importância econômica é relativa, pois está condicionada à realidade da época em que viveu. Curitiba, em 1890, possuía apenas 25 mil habitantes...

Pelo que foi dito antes, em 1879 a família de Manoel já residia em Curitiba. Julieta tinha então 13 anos de idade. Sua meninice, ela a passara em Santa Catarina e no Rio de Janeiro (Ilha do Governador, segundo uma parente). Saberemos algum dia quais as experiências de vida que mais a marcaram nesse período? Os fatos exteriores da vida de uma pessoa são mais fáceis de conhecer; agora, os outros...

A família morava bem no centro de Curitiba, próximo à Catedral, onde o monsenhor Celso Itiberê da Cunha era o vigário desde 1901.

Nada sei sobre a educação de Julieta. Mas, seguramente, ela deve ter recebido a educação da época para as moças de sua classe social.

Em algum momento, por essa época, ela conheceu Florêncio, um dos dez filhos do primeiro casamento do Coronel Caetano José Munhoz, pessoa de destaque na sociedade paranaense de então.

Caetano foi um dos primeiros a instalar engenho de erva-mate em Curitiba -- o engenho da Glória -- que daria nome ao bairro (Alto da Glória). Quando Zacarias de Góes e Vasconcelos assumiu a presidência da recém-instalada província do Paraná, em 1853, ele lhe ofereceu recepção em sua casa, conforme relata Alcides Munhoz em “Folhas Cadentes”. Caetano faleceu em 1877. Quando Julieta conheceu Florêncio, provavelmente o pai deste não mais vivia (a mãe já havia morrido em 1861).

A história de sua união com Florêncio tem as características dos romances que ela gostava de ler. Havia oposição de seus pais a essa união (por qual motivo?). Mesmo assim ela se casaria, em segredo, aos 14 anos (ele com 22), em 11 de outubro de 1880, na capela de N.Sra do Rosário, conforme registrou, um ano e meio depois, no livro próprio, o padre Júlio Ribeiro de Campos, muito amigo de Florêncio (a quem este assistiria, mais tarde, no leito de morte).


Há uma menção a Florêncio naquele livro de Alcides Munhoz: sabemos dessa fonte que em 1887 ele era funcionário da Tesouraria da Fazenda, em Curitiba (o prédio da delegacia fiscal do tesouro federal localizava-se então na atual rua São Francisco, esquina com a Barão do Serro Azul). Florêncio foi um dos que assinaram a carta em que os funcionários de Alfredo Munhoz (seu irmão mais velho) o cumprimentavam pelo aniversário. Certamente Alfredo, que galgara todos os postos da carreira fazendária auxiliara o irmão mais novo a iniciar nessa mesma carreira, que também já fora seguida por Caetano Alberto, um outro irmão. Depois de Curitiba, Florêncio atuaria na alfândega de Paranaguá, em Alagoas e terminaria seus dias como guarda-mor da alfândega de Santos, em 1909 (“guarda-mor”, segundo os dicionários, era o representante do fisco a bordo dos navios, ou o título oficial do chefe da alfândega nos portos).

Sabe-se que o casal Julieta-Florêncio se separou. Segundo a versão que ouvi em casa, a separação teria sido encorajada pela mãe de Julieta, Rita. Por essa época, Manoel já havia falecido (faleceu em 1891).

Supondo que a separação ocorreu no ano de nascimento do último filho de Julieta, ou após, então ela não deve ter ocorrido antes de 1895. Pelo que se depreende da inscrição no verso de uma foto no álbum da família, datada de 28 de abril de 1895, ele já morava em Paranaguá nessa época. Na realidade, ele foi transferido para a Alfândega de Paranaguá em agosto de 1890. Mas seus filhos todos nasceram em Curitiba. Em 1899 ele continua residindo em Paranaguá, pois seu nome consta como um dos 1ºs. escriturários da Alfândega dessa cidade, segundo o “Almanach Paranaense para 1900” (p.146). Não sei se Julieta mudou-se com ele para Paranaguá, mas não deve tê-lo acompanhado a Alagoas, já que nada ficou, na memória da família, relativamente a alguma lembrança dela associada a esse Estado da federação.

Em 1894 Curitiba foi invadida e ocupada pelos federalistas, após tomarem Paranaguá. A eles se juntam as forças de Gumercindo Saraiva, que avançara desde o sul e derrotara a resistência de Tijucas. Devido ao papel ativo desempenhado por Teófilo em Paranaguá, todo o clã dos Soares Gomes – vale dizer, a viúva de Manoel e seus filhos – devia ser partidário dos federalistas, ainda mais pelas suas fortes vinculações com Santa Catarina. Como se sabe, a revolta da Armada escolhera Desterro, a capital da província, para sede do Governo Provisório da república antiflorianista.

A família Munhoz, por outro lado, situava-se politicamente em campo oposto, pelo menos Caetano Alberto, irmão de Florêncio, que era membro do governo de então, pois ocupava o elevado cargo de Secretário do Interior, Instrução Pública e Justiça (Caetano Alberto, que também fizera carreira fazendária, se aposentara há pouco). A tradicional família Munhoz pertencia à “fração hegemônica da classe dominante paranaense”, a dos ervateiros. Assim, tal família devia apoiar as forças da ordem, legalistas, do Marechal Floriano Peixoto. Todavia, a separação do casal não deve ter sido causada pelas divergências políticas entre as duas famílias, pois Florêncio tomou o partido dos maragatos, i.e. dos Soares Gomes, antiflorianistas, chegando por isso a ser demitido da Alfândega de Paranaguá em 1894 (seria mais tarde reintegrado às suas funções).


Quando as forças federalistas invadiram Curitiba, a cidade estava acéfala. O governador em exercício, Vicente Machado, havia fugido para o interior. O Barão do Serro Azul, na condição de líder empresarial mais importante, procurava negociar com os revoltosos para evitar saques e outras manifestações de violência. Imagino a apreensão dos moradores da cidade ante tais fatos, em particular dos membros da família de Julieta, então com 28 anos, de sua mãe e dos filhos (Hermínia nessa época tinha 11 anos e Arabela, minha avó, apenas 4). As ameaças vinham num primeiro momento dos revolucionários, famosos pelas suas crueldades (degolamentos). Depois, quando a situação política reverteu em favor dos florianistas, as ameaças vinham das perseguições destes aos revoltosos. Antes, Teófilo estivera na iminência de ser fuzilado em Paranaguá. Isso agora viria a ocorrer com o Barão do Serro Azul e seus companheiros no km 65 da estrada de ferro Curitiba-Paranaguá, acusados de colaborarem com os federalistas.

Julieta faleceu em 1919, aos 53 anos. Quando pesquisei, a respeito dela, nos registros do Cemitério Municipal S.Francisco de Paula, em Curitiba, fiquei surpreso ao constatar que a causa da morte fora a tuberculose. Nunca ouvira falar, em conversas de família, nessa doença associada a ela. Esconderam esse fato por considerá-lo vergonhoso? Que choque deve ter sido para a família constatar essa doença, numa época em que ela era mortal! Como teriam reagido seus filhos? Arabela uma vez me contou que chorava escondido, pedindo a Deus que a doença passasse para ela, poupando assim a sua mãe...

Quando e onde ela teria contraído a doença? Em Paranaguá (cidade sabidamente menos salubre que Curitiba), onde poderia ter vivido algum tempo? Foi essa a verdadeira causa da separação do casal?

Julieta chegou a ser internada em algum sanatório, ou foi um caso de “tuberculose galopante”? Chegou a mudar-se para outro lugar, em busca de “ares” mais saudáveis, como ocorria normalmente com pessoas acometidas por essa doença? De qualquer forma, a doença deve ser a principal explicação para o fato de Arabela ter sido “criada pela avó” Ritinha, de quem, aliás, ela gostava muito, e a quem ela auxiliava nos cálculos, pois era “boa em matemática”...

Quando Dona Ritinha morreu, o nome de Julieta não constou, ao lado dos irmãos, no convite para a missa de 7º dia publicado no “Diário da Tarde” de 12 de dezembro de 1911. Que motivo explicaria essa omissão, reveladora da atitude da família perante ela? A doença a teria expulsado da sociedade e do mundo dos vivos? Ou seria simplesmente para não constar o sobrenome Munhoz ao lado do seu, que ela excluiu após a separação?



Das lembranças de Julieta que ficaram no âmbito familiar, uma me foi transmitida pelo meu pai: ele se lembrava de uma vez, quando menino, em que ela descrevia a ação de um romance que lera, no qual um dos personagens atirava em outro. E imitava o som da arma disparando: pam... pam...pam... (aliás, esse gosto por ler romances ela legou também às suas filhas, o que, segundo ainda o meu pai, era objeto de amável admoestação do monsenhor Celso a Dona Ritinha, por causa da leitura, pelas jovens em formação, de obras com possível conteúdo pernicioso...)

Outra lembrança de Julieta relaciona-se ao canto lírico. Arabela contava, emocionada, que na visita que fez à sua mãe, já bem doente, ela lhe cantou "Musica Proibita”(*). Quando Arabela, que tinha então 29 anos, retornava para o interior (onde seu marido era delegado de polícia), a mãe faleceu.

A partir de agora, um dos meus poemas preferidos de Cruz e Souza—“Tuberculosa” -- estará para sempre associado a essa mulher sensível, sonhadora, que viveu muito tempo antes de eu nascer. Mais do que referir-se a um personagem romântico, o poema expressa a verdade de uma experiência de vida dolorosa, numa determinada época histórica, felizmente superada, em que a medicina não contava ainda com os meios de vencer essa terrível doença.

Cruz e Souza, como Julieta, também nasceu em Santa Catarina. Nasceu no Desterro cinco anos antes dela. E morreria da mesma doença em 1898.

(*)"Musica Proibita" pode ser ouvida em:


Ogni sera di sotto al mio balcone
Sento cantar una canzone d’amore,
Più volte la ripete un bel garzone
E battere mi sento forte il core.
Oh quanto è dolce quella melodia!
Oh com’ è bella, quanto m’ è gradita!
Ch’io la canti non vuol la mamma mia
Vorrei saper perché me l’ha proibita?
Ella non c’è ed io la vo’ cantare
La frase che m’ha fatto palpitare:
“Vorrei baciare i toui capelli neri
Le labbra tue e gli occhi tuoi severi;
Vorrei morir con te angel di Dio,
O bella innamorata, tesor mio.”
Quí sotto il vidi ieri a passeggiare
E lo sentiva al solito cantar:
“Vorrei baciare i toui capelli neri
Le labbra tue e gli occhi tuoi severi;
Stringimi, o cara, stringimi al tuo core
Fammi provar l’ebbrezza dell’amor.”

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Toda noite embaixo da minha sacada
Ouço cantar uma canção de amor
Várias vezes a repete um belo rapaz
E a bater sinto forte o coração.
Oh, quão doce é essa melodia
Oh, como é bela, quanto me agrada
Minha mãe não quer que eu a cante
Gostaria de saber porque ela me proibiu
Ela não está e eu quero cantá-la
A frase que me fez palpitar:
“Gostaria de beijar os teus cabelos negros
Os lábios e os olhos teus severos
Gostaria de morrer contigo, anjo de Deus
Ó bela namorada minha querida”
Aqui embaixo ontem eu o vi a passear
E o ouvia cantando como sempre:
“Gostaria de beijar os teus cabelos negros
Os lábios e os olhos teus severos
Aperta-me, querida, junto ao teu coração
Deixa-me provar a embriaguez do amor”.

Sobre o compositor:



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