sexta-feira, 13 de março de 2009

EZRA POUND E A CHINA




Ao longo de sua vida conturbada, o genial poeta americano Ezra Pound (1885-1972) sempre se interessou pela literatura e filosofia chinesas, traduzindo antigos poemas clássicos e estudando o pensamento de Confúcio, conforme mostrou Noel Stock em “The Life of Ezra Pound”.


Um marco decisivo na trajetória intelectual do poeta foi o encontro com a viúva de Ernest Fenollosa, em 1913, que viu nele a pessoa mais indicada para assumir o legado desse orientalista, que chegou a ser, durante um certo tempo, Comissário Imperial das Artes, em Tóquio. Há um trabalho de Fenollosa, intitulado ”Os Caracteres da Escrita Chinesa como Instrumento para a Poesia” (consta do livro “Ideograma”, organizado por Haroldo de Campos, Ed. Cultrix, 1977), que Pound tinha na mais alta conta, referindo-se a ele como um trabalho iluminador, e “um dos ensaios mais importantes do nosso tempo”, “básico para a estética”. No material deixado por Fenollosa, havia esboços de traduções de poesia chinesa, em cima das quais Pound trabalhou, daí se originando seu livro “Cathay” (como a China era chamada na Idade Média), puiblicado em 1915, dedicado inteiramente a tais traduções, ou recriações. “Cathay” é uma requintada coletânea de 18 poemas, 10 dos quais são de autoria de Rihaku (o nome japonês de Li Po, ou Li Bai, o mais famoso poeta chinês no Ocidente). O livro trata de temas relativos à guerra (o retorno dos guerreiros, pesarosos e exaustos; a dura vida da campanha; a terra por ela devastada), à mulher (saudosa do amado; esquecida pelo marido bêbado; enquanto jovem e bela, atraindo a atenção dos transeuntes), à amizade entre os homens (lembranças dos momentos em que estiveram juntos, alegres, ou sobre sua separação), as memórias da cidade de Choan, à solidão do homem etc.


São poemas de caráter, muitas vezes, descritivo ou narrativo, em que a beleza dos versos repousa frequentemente na exploração dos aspectos visuais da situação. Por exemplo, em “Sennin Poem by Kakuhaku”:


“The red and green kingfishers
flash between the orchids and clover,
One bird casts its gleam on another.”

(Os martins-pescadores rubros e verdes/ reluzem entre os trevos e as orquídeas,/ Um pássaro lança seu brilho sobre o outro.)

Noutro poema, consta a beleza plástica deste verso: “The Dai horse neighs against the bleak wind of Etsu” ( O cavalo Dai relincha contra o vento gélido de Etsu).


A descrição de fenômenos da natureza pode estar associada a sensações humanas:


“By the North Gate, the wind blows full of sand,
Lonely from the beginning of time until now!”.

(Na Porta Norte, o vento sopra, arenoso,/ Solitário desde o começo dos tempos!).

Esses versos fazem parte do poema “Lament of the Frontier Guard”, que transmite toda a sensação de solidão e vulnerabilidade dos guardiães da fronteira (“alimento dos tigres”) na luta contra os “bárbaros”.


O aspecto narrativo pode ser exemplificado pelo poema “Song of the Bowmen of Shu”, quando trata do retorno dos guerreiros:


“When we set out, the willows were drooping with spring.
We come back in the snow,
We go slowly, we are hungry and thirsty,
Our mind is full of sorrow, who will know our grief?”

(Quando partimos, os salgueiros descaíam com a primavera./ Voltamos sobre neve,/ Avançamos lentamente, famintos e sedentos,/ A mente cheia de tristeza, quem saberá da nossa dor?)

O antológico “The River-Merchant’s Wife: a Letter” baseia-se, todo ele, na narração. Quem fala é a esposa do mercador do rio. Ele está há cinco meses longe de casa. A esposa rememora os antecedentes da sua relação com o marido, desde a infância:


“And we went on living in the village of Chokan:
Two small people, without dislike or suspicion”.

(E continuávamos a viver na aldeia de Chokan:/ Dois pequeninos, sem desagrado ou suspeita).

Nesses versos narrativo-descritivos podem ocorrer associações mais abstratas, em que o poeta “vê” mais do que “ouve” a partitura do canto dos rouxinóis:


“And (I) heard the five-score nightingales aimlessly singing”

(E ouvi os rouxinóis de partitura cantando a esmo).

Ou então observações que cativam pelo inusitado:
“The Emperor in his jewelled car goes out to inspect his flowers”

( O Imperador, em seu carro adornado com jóias, sai para inspecionar as flores).

Ressalte-se também o coloquialismo adotado por Pound em algumas passagens (assim como a reflexão do poema sobre a impossibilidade da comunicação):


“The birds flutter to rest in my tree,
and I think I have heard them saying,
‘It is not that there are no other men
But we like this fellow the best,
But however we long to speak
He can not know of our sorrow’.”

(Os pássaros esvoaçam, pousando na minha árvore,/ e acho que os ouço dizer:/ “Não é que não existam outros/ Mas gostamos mais deste camarada./ Porém, por mais que desejemos falar/ Ele não pode saber da nossa tristeza”).

Pound também se interessou muito por Confúcio, ou Kung Fu-tze (551-479 a. C.), salientando a atualidade de suas máximas éticas e políticas para o mundo moderno, como aquelas que enfatizam a necessidade do homem primeiro voltar-se para si mesmo, adotando uma conduta correta, antes de voltar-se para os outros, visando mudar o mundo.


Dentre as muitas máximas de Confúcio, presentes nos “ Cantos”, cita esta: “The archer who misses the bullseye turns and seeks the cause of his failure in himself” (O arqueiro que erra o centro do alvo volta-se para procurar a causa de sua falha em si mesmo).


Já em 1928 publicou sua tradução do “Ta Hio”, a partir de outras traduções, disponíveis. Como seu conhecimento da língua chinesa era precário, traduz, ou recria, a partir dos trabalhos de eruditos (especialmente James Legge), confrontando-os com os ideogramas do texto original, e buscando transmitir toda a sua carga de expressão visual, pela qual era fascinado. Em 1937 publica um digesto dos “Analectos” e em 1950 sua tradução integral.


1938 é o ano de um longo ensaio sobre a ética de Mêncio (372-289 a.C.) (Pound, aliás, considerava o “Livro de Mêncio” como o “livro mais moderno do mundo”).


Em 1945, publica outra tradução de Confúcio (“The Unwobbling Pivot”). Sobre o filósofo chinês, afirmou uma vez que “Kung é para a China o que a água é para os peixes”.


Em 1954, Pound lança sua tradução da Antologia Clássica, 305 odes, compiladas por Confúcio, da mais antiga poesia popular chinesa. Deve-se salientar, também, conforme o biógrafo Noel Stock, a presença do elemento confuciano na obra à qual Pound dedicou toda a sua vida -- “Os Cantos”, desde o Canto 13, inteiramente dedicado ao filósofo, em diálogo com alguns discípulos, até o Canto 98. No Canto 13, há essa passagem notável, quando Kung afirma:
“If a man have not order within him
He can not spread order about him;
And if a man have not order within him
His family will not act with due order;
And if the prince have not order within him
He can not put order in his dominions”.
(Se um homem não tiver a ordem dentro de si/ Não poderá difundir a ordem ao seu redor;/ E se um homem não tiver a ordem dentro de si/ Sua família não agirá com a devida ordem;/ E se o príncipe não tiver a ordem dentro de si/ Não poderá pôr ordem em seus domínios.)
Também no Canto 13, Confúcio faz esse elogio da postura equilibrada, de centro, para que o homem não incorra nos excessos do radicalismo:


“Anyone can run to excesses,
It is easy to shoot past the mark,
It is hard to stand firm in the middle”.
(Qualquer um pode partir para os excessos,/ É fácil errar o alvo,/ Difícil é situar-se no centro.)


Ao longo dos “Cantos” ocorrem muitas citações dos “Analectos”, conforme a tradução do próprio Pound, além de inúmeras outras referências chinesas, inclusive à história da China (Cantos 53 a 61), verificando-se mesmo, aqui e acolá, a presença gráfica dos próprios ideogramas.










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