Quais os fatores que explicam a singularidade e a excelência poética da “Divina Comédia”, em particular do “Inferno”? Essa é a pergunta que nos fazemos ao concluir a leitura da edição bilíngüe (italiano-inglês) de “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, a verse translation by Allen Mandelbaum, Bantham Books. Trata-se de uma edição bem apropriada para quem se aproxima da obra pela primeira vez, devido não só à riqueza de informações contida em suas notas, mas também, ou principalmente, à forma como foram traduzidos os versos originais. A tradução não é rimada. Prioriza assim a fidelidade ao que dizem os versos originais, evitando as distorções decorrentes da busca da equivalência sonora na outra língua.
Dentre os fatores que explicam aquela excelência poética, destaque-se, inicialmente, o tema escolhido: uma viagem pelos domínios do além-túmulo, feita por uma pessoa que ainda não morreu. Esse tema sempre despertará interesse porque reflete uma preocupação permanente do ser humano (a suposta vida após a morte). A concepção de Dante (1265-1321) está condicionada historicamente pela visão de mundo da Idade Média Ocidental, em que a religião católica exercia influência preponderante. Assim, Dante (ele mesmo o protagonista de sua obra, atribuindo a ela um caráter mais “verídico”) visitará, conforme o marco de referência teológico daquela religião, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, destino final de todos os seres humanos, após o julgamento divino da nossa conduta terrena.
Se o tema sempre despertará interesse, o tratamento dispensado a ele, em termos de conteúdo e forma, seguramente explica a sua grande poesia.
Quanto ao conteúdo, saliente-se, em primeiro lugar, que se trata de um poema narrativo. Dante narra uma história curiosa, povoada de seres fantásticos (eríneas, harpias, centauros, gigantes etc). Trata-se de uma história sempre interessante ao leitor moderno, ao contrário do que ocorre, às vezes, com outras obras clássicas. Há muita ação nessa história , que progride rapidamente, em capítulos (cantos) curtos. O Inferno possui 34 cantos, e cada canto aproximadamente 150 versos. Nesse “reino”, cada canto descreve uma cena, uma situação, que se altera continuamente. Uma razão adicional para essa leveza da narrativa é a freqüência dos diálogos, não só os mantidos entre Dante e seu guia (o poeta latino Virgílio), mas também aqueles travados entre ele e os personagens que vai encontrando, na sua perambulação.
O que é narrado no “Inferno”? basicamente, aquilo que os dois poetas vêem nessa descida ao mundo dos mortos, com destaque para os sofrimentos impostos aos pecadores, tanto maiores quanto mais graves são os seus pecados, que Dante classifica em função de uma dada escala de valores. Os poetas descem os nove círculos subterrâneos do Inferno (cada círculo contém subdivisões), avançando dos círculos onde estão os pecadores menos condenáveis (os envolvidos pelo excesso das paixões dos sentidos, que abrangem os luxuriosos, glutões etc) até os mais condenáveis (os que traíram seus parentes, amigos e benfeitores, presentes no nono círculo. Aqui, no fundo do Inferno -- onde é dominante o gelo, e não o fogo, como nos círculos iniciais --, encontra-se Lúcifer, um gigante preso ao solo congelado, do centro da terra, que tritura, em uma de suas três bocas, Judas Iscariotes, o apóstolo que traiu Cristo). Dante identifica os pecadores, que ele vai encontrando em sua perambulação: são personagens reais (Brunetto Latini) ou fictícios (Ulisses), históricos ou contemporâneos (o papa inimigo Bonifácio V), notáveis ou não, bíblicos (Eliseu, Caifás etc) ou da mitologia greco-latina (Minotauro). O número desses personagens, e a diversidade de situações aos quais estão associados, além de ilustrar os diversos tipos de pecados, dão um colorido múltiplo ao poema, responsável em boa medida pelo seu encanto. Mas a riqueza do seu engenho poético, da sua imaginação, também se revela nos sofrimentos concebidos para cada classe de pecadores, que faz o poema assumir dramaticidade extrema (Bertrand de Borne segurando a própria cabeça destacada do corpo, os advinhos-fraudadores com as cabeças invertidas no corpo, ironicamente, sem poder enxergar para a frente etc).
Quanto à forma utilizada, ressalte-se, de início, que os sofrimentos infligidos aos pecadores, no Inferno, seriam impostos, a rigor, sobre as almas deles, e não sobre os seus corpos. Não seriam sofrimentos físicos. Mas é dessa forma que são tratados no poema. Assim, algo essencialmente abstrato reveste-se de um caráter concreto, é materializado, descrevendo-se uma situação equivalente, ou analógica, à verdadeira, na concepção católica. Qual a vantagem desse procedimento? é a de que ele permite ao poeta explorar todo o seu potencial visual, plástico, na descrição dos horrores do Inferno, sentidos, por empatia, pelo leitor (ao qual Dante, muitas vezes, se dirige diretamente, acentuando assim o seu caráter de verossimilhança ). Essa é uma razão a mais para o fascínio que o poema exerce. As imagens estão sempre presentes nos versos, o “Inferno” é um poema essencialmente visual. A todo momento, o poeta incorpora a ele comparações e metáforas.
A linguagem adotada por Dante, como se sabe, foi o italiano falado então pelo povo, e não o latim dos eruditos, comumente usado em seus escritos. O uso que fez desse idioma é um fator muito importante para explicar a excelência da sua poesia (embora não imprescindível, pois ainda é gratificante ler o poema em tradução, contrariando assim aquela definição de Robert Frost—“poesia é o que se perde na tradução”): Dante explora a sonoridade das palavras, da qual a rima é o exemplo mais evidente, mas não o único (ele adota o esquema ABA BCB CDC... para as rimas dos versos decassílabos, que formam os tercetos do poema). Dante estava consciente da funcionalidade da linguagem para alcançar certos efeitos na poesia, conforme atestam seus escritos. Assim, o Inferno apresenta uma linguagem que se quer áspera, rude, que será diferente daquela adotada no “Paraíso”. Há mesmo a presença de termos chulos ou vulgares no “Inferno”, gestos obscenos (começo do canto 25), além de situações grotescas, como a do poço de excremento, reservado aos bajuladores, ou aquela do canto 21, verso 139, em que um dos diabos (Barbariccia) solta sons grosseiros, equiparados ao de uma trombeta...: “ed elli avea del cul fatto trombetta.”
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