A publicação em 1996 de “Poemas Chineses” pela Editora Nova Fronteira, tradução de Cecília Meireles, nos dá a oportunidade de conhecer uma amostra da produção de dois dos mais famosos poetas da literatura chinesa – Li Po e Tu Fu.
Eles pertencem à dinastia Tang (618-907) que, na história da China, se notabilizou pela riqueza e excelência da produção poética.
Neste artigo, minha atenção estará voltada para os quarenta e seis poemas de Li Po (701-762) que constam daquela coletânea, buscando caracterizá-los no que têm de mais singular, a fim de formular uma primeira idéia a respeito da poesia chinesa (através das composições de seu representante mais famoso no Ocidente), embora filtrada pela sensibilidade ímpar de Cecília Meireles.
Valendo-me da distinção presente na citação de Camilo Pessanha, que consta da Introdução a esses “Poemas Chineses”, me deterei no seu “elemento substantivo ou imaginativo”, uma vez que o “elemento sensorial ou musical”, resultante de “uma técnica métrica especialíssima”, não pôde ser traduzido pelos poetas ocidentais, nos quais se basearam certamente essas traduções, por ser “absolutamente inconversível”.
Não se sabe ao certo onde Li Po (ou Li Bai) nasceu, apenas que se mudou, ainda menino, para Sichuan. Fez estudos regulares, destacando-se neles pelo seu brilhantismo. Serviu na corte do imperador e perambulou por boa parte da China. Morreu embriagado, tentando abraçar o reflexo da lua nas águas do Yang-tsé. Essa versão, supostamente lendária, sobre a morte do poeta é muito significativa, pois envolve os dois maiores motivos de sua poesia – a lua e a bebida.
Li Po é o poeta da lua e do vinho. Há uma recorrência constante desses motivos na grande maioria dos poemas. Em “Bebo sozinho ao luar” (p.36), com tons surrealistas, ele levanta sua taça, oferecendo-a à lua: “com ela e a minha sombra, já somos três pessoas”. Depois, “embriagados”, vão para casa. Mas ele continuará ligado a esses companheiros, encontrando-os na Via Láctea. Em “Com a taça na mão, interrogo a lua” (p.37), conforme uma personificação presente em muitos poemas, como se verá, ele se dirige à lua como se fosse uma pessoa. Expressa aqui a convicção de que tudo flui, tudo passa, não só os homens que admiram a lua, mas também ela própria, apesar da sua aparente imutabilidade. Ressalte-se a imagem insólita da lua comparada a um “espelho voador”. Mas a junção daqueles dois motivos pode produzir também poemas de outro tipo, como o intitulado “Canção da tristeza” (p.59-60), em que o poeta interrompe uma festa, já bem adiantada, na hora em que os “convivas estão menos alegres”, para entoar essa “Canção” e falar da precária condição humana. Afirma em certo momento: “(Escutai, lá longe, no campo branco de lua,/ escutai os macacos que choram,/ acocorados nos túmulos em abandono!)”. Mas essa tônica amarga não é a mais freqüente na poesia de Li Po, que se caracteriza por ser predominantemente alegre (dionisíaca, diria um ocidental), de muito vinho, canções e dançarinas, embora eivada, às vezes, de melancolia.
Uma característica marcante dos poemas é a presença neles de elementos da natureza (lua, montanha, relva, flores, vento, nuvem, lago, rio etc), em toda sua concretitude; daí a importância do aspecto visual, descritivo, dos versos, e a busca incessante da objetividade, evitando-se a mera confissão de sentimentos. A natureza está em harmonia, num equilíbrio poético, e a intervenção humana rompe a placidez do cenário natural, o que é motivo de tristeza para o poeta (cf. “Passeio entristecido”, p. 64). A natureza serve de referencial (estético, filosófico) permanente para Li Po.
Os elementos da natureza (minerais, vegetais ou animais) são humanizados, numa personificação recorrente, chegando a ocorrer poemas em que a presença humana está totalmente descartada. Em “Garça branca” (p.56), por exemplo, um grande floco de neve é comparado a uma garça branca, que pousa sobre um banco de areia, e fica ali, “observando” o inverno. Normalmente, todavia, ocorre a presença humana, contrastando com a paisagem natural, em que a lua “olha” para o poeta escrevendo versos (p.55), os nenúfares “cantam” hinos de amor à lua (p. 64), antes dele perturbar essa placidez, e os cavalos levantam “queixas ao céu” (p. 31), ou relincham “tristemente” (p. 40).
O ideal para Li Po é a integração do homem à natureza (cf. “Diálogo na montanha”, p. 48). Quando lhe perguntam porque mora na verde montanha, o poeta apenas sorri, sem poder responder, numa postura anti-intelectualista, pois não há como pôr em palavras a beleza das “flores de pessegueiro” sendo “levadas pela água do rio...” Também em “Meio-dia” (p.34) constata-se a mesma satisfação de estar vivo, em comunhão com a natureza. Em “Caçada” (p.41) há esse elogio à vida ao ar livre, por parte do letrado Li Po: “(Fechado até a velhice atrás de cortinas,/ como pode o letrado competir com o cavaleiro?)”.
Uma outra característica dos poemas é a de que tudo é motivo para a poesia, especialmente os fatos mais singelos, como, por exemplo, a dançarina meio embriagada que cambaleia e se apóia num móvel (p.69) ou a jovem numa carruagem que cruza com um cavaleiro e lhe dá um sorriso (p.42). Li Po apenas constata esses incidentes, objetivamente, não interpreta os sentimentos das pessoas neles envolvidas. O poeta não se volta para grandes temas. Seu interesse assim é semelhante ao da poesia moderna ocidental: não existem temas especiais para a poesia, tudo é motivo para ela. Mesmo quando se ocupa de “grandes” temas, da guerra, por exemplo, sua ótica é a dos soldados que, montando guarda em região ocupada, estão saudosos de casa (cf. “Canto de guerra”, p. 74). Ou então aproveita para constatar que os “bárbaros ocupam-se de assassinar como nós de lavrar”, concluindo o poema (“Combate-se ao sul da muralha”, p. 30) com esses versos sábios, especialmente considerando-se a época em que foram escritos (séc. VIII): “Sabei que as armas são uma coisa perversa:/ o sábio não recorre a elas senão a contragosto”.
Os temas mais freqüentes dos poemas não são, todavia, os da guerra, mas os das lembranças; da alegria de viver; da mulher distante do marido ou abandonada por ele (em que o poeta assume a condição feminina e lhe dá voz); da despedida do amigo; do erotismo; da passagem do tempo, especialmente para a mulher; da efemeridade do poder político (os palácios desaparecem e em suas ruínas prevalecem, de novo, os elementos da natureza – a erva, os arbustos, as cigarras cantando ... cf. “Em Nanquim”, p. 67; “Ruínas de Su-Tai”, p. 61. Nesse palácio, “Hoje, a lua de Si-kiang é a única dançarina a bailar/ nas salas por onde deslizavam tantas mulheres formosas”)
Com relação à estrutura formal, geralmente o poeta apresenta o “cenário”, ou uma descrição, para depois narrar uma pequena história, ou um incidente, e então concluir com uma reflexão, ou observação pessoal.
Diferentemente da poesia moderna ocidental, mais cerebral, os poemas de Li Po são fáceis de ler. Apresentam pouco hermetismo e referências histórico-culturais, o que é uma das razões para a sua maior penetração no Ocidente, ao contrário de outros poetas chineses, segundo alguns autores.
Por sua beleza formal, vale a pena destacar alguns versos, ou poemas, além dos já citados. Em “Combate-se ao sul da muralha” ocorrem versos de grande força expressiva e beleza plástica. “Combate-se nas planícies: mata-se, morre-se,/ os cavalos dos mortos relincham, levantando queixas ao céu./ Os corvos bicam as entranhas dos mortos,/ depois voam e pousam-nas nos ramos das árvores secas.” (p. 31). No poema “Rosa vermelha” (p. 39), há um belo contraste entre o branco (da rosa que está sendo bordada pela esposa e da neve do campo de guerra de que seu marido participa) e o vermelho (do sangue da esposa que se pica, e corre sobre a rosa que bordava, e do sangue do marido, que pode estar tingindo o campo de neve). Em “Lembranças” (p. 54), as árvores do jardim sob as quais, outrora, o poeta esperava pela amada que o deixou, insensível como as pedras, igualmente se petrificam, tornando-se “árvores de jade”. Esse expressionismo de Li Po também é revelado em “Os corvos crocitam na noite” (p.32), cuja ambiência (corvos crocitando, noite) acentua a tristeza da esposa, longe do marido, que não volta para casa, ao contrário dos corvos, que retornam para seus ninhos. “Caracteres eternos” (p. 66) focaliza o poeta escrevendo versos, enquanto na sua janela os bambus balançam. Nele consta essa bela comparação: “Os caracteres que traço parecem/ brotos de ameixeiras esparsos na neve” (vale dizer, a folha de papel). Em “Fim da tristeza” (p. 76), os versos iniciais associam o brilho prateado do luar na água a peixes: “As pequenas vagas brilham ao luar/ que prateia a limpidez verde da água./ É como se mil peixes corressem para o oceano.” O poeta fala da alegria proporcionada pela beleza dos nenúfares, humanizados, nas águas em que seu barco flutua, afastando a tristeza que sentia até então. “A thing of beauty is a joy for ever” seria dito mais de mil anos depois por um poeta ocidental (John Keats), expressando o mesmo fenômeno. Isso revela como a Poesia pode reiterar verdades sobre a condição humana, apesar de suas manifestações se distanciarem no tempo e no espaço.
(Publicado em "Nicolau"- ano XI, nº 60)
Nenhum comentário:
Postar um comentário