A “Divina Comédia”, para quem não a leu ainda (e mesmo para quem a leu, nas traduções mais antigas) parece ser uma obra cujos temas, teológicos e filosóficos, são desenvolvidos numa linguagem sempre refinada e decorosa. Nada mais falso, se considerarmos a linguagem efetivamente empregada por Dante (cf. as traduções de Vasco Graça Moura e Jorge Wanderley-- esta só do “Inferno” -- ou de Allen Mandelbaum para o inglês). O poema, embora trate desses temas, e de outros também, adota uma linguagem que se diferencia em função do assunto em questão, linguagem essa que nem sempre é elevada, refletindo desse modo a alma popular, italiana ou universal.
A linguagem que Dante-autor utiliza para expressar as impressões da viagem do Dante-personagem pelos mundos dos mortos corresponde a esses mundos. Assim enquanto ele usará uma linguagem mais elevada no Paraíso poderá usar uma mais vulgar, ou mesmo chula, no Inferno. E dentro do próprio “Inferno” haverá também variação na maneira de se expressar como se depreende da comparação do Canto II, ou do Canto V, com a dos Cantos subseqüentes, que abordam cenas grotescas, trágicas, cômicas ou até mesmo repugnantes. A essa diversidade de situações corresponderão diferentes linguagens, pois forma e fundo estão intimamente relacionados nas obras literárias.
No Canto II, no Céu, a “gentil Senhora” (Nossa Senhora) encarrega Luzia (a santa padroeira da visão) de auxiliar o seu devoto. Ela então vai até onde estava Beatriz, sentada ao lado de Raquel (a amada de Jacob, irmã de Lia, conforme a Bíblia) -- símbolo da vida contemplativa -- pedindo-lhe para ir encontrar-se com Virgílio, no Limbo, e mandá-lo socorrer Dante, que se extraviou na selva oscura da vida pecaminosa, impedido pelas três feras de avançar no caminho de sua ascensão espiritual.
Também no Canto V, sobre os infelizes amantes Paolo e Francesca, condenados ao círculo dos luxuriosos, a linguagem é elevada e delicada.
Dante usa intencionalmente linguagem que mais convém ao contexto em que se situa. No Canto XXXII, ele afirma que gostaria de ter “rimas ásperas, roufenhas” (rime aspre e chiocce- v.1) para descrever uma certa situação no Inferno, o que é revelador dessa busca intencional da forma poética mais adequada ao seu objeto. Por isso, nunca se faz menção ao nome de Deus no Inferno. Os personagens usam circunlóquios para nomeá-lo.
Dante não tem falsos pudores, ou constrangimentos verbais, em seu modo de expressão. É direto e vigoroso. No Canto XX, dos feiticeiros e advinhos, o castigo destes,
pela “lei do contrapasso” (a correspondência da punição recebida com o pecado cometido), é, ironicamente, ter a cabeça voltada para trás, de modo que não podem agora nem ver o que está à sua frente, só o que está atrás. Dante explora visualmente tal imagem insólita, dirigindo-se ao leitor com familiaridade (aliás, esta é outra característica formal do poema): “como eu podia ter o rosto enxuto,/ quando essa nossa imagem vi de perto/ tão torta, que o pranto de seus olhos/ as nádegas banhava pela fenda” (com'io potea tener lo viso asciutto,/ quando la nostra imagine di presso/ vidi sì torta, che 'l pianto de li occhi/ le natiche bagnava per lo fesso. -v.21-24).
A expressão do mundo baixo, vil, do Inferno, em que descreve situações degradantes e até repugnantes, se faz por uma linguagem às vezes chula. No Canto XVIII, Dante coloca os bajuladores no fundo da segunda vala do Malebolge, imersos nas fezes. Diz ele: ”Ali chegamos; e lá no fosso/ vi gente chafurdada em tal esterco/ que parecia provir de privadas humanas./ E enquanto o fundo com os olhos investigava,/ vi um com a cabeça tão suja de merda/ que não distinguia se era leigo ou clérigo.“(Quivi venimmo; e quindi giù nel fosso/ vidi gente attuffata in uno sterco/ che da li uman privadi parea mosso./ E mentre ch’ío là giù con l’occhio cerco, vidi un col capo sì di merda lordo,/ che non parëa s’ era laico o cherco. -v. 112-117). No final do Canto, Virgílio sugere a Dante olhar mais adiante a bajuladora Taís (personagem de uma peça de Terêncio). Quer que ele veja “a face/ daquela suja e desgrenhada rameira/ que lá se arranha com suas unhas cheias de merda,/ e ora se agacha, ora se levanta./ É Taís, a puta /.../.”: sì che la faccia ben con l’occhio attinghe/ di quella sozza e scapigliata fante/ che là si graffia con l’unghie merdose,/ e or s’accoscia e ora è in piedi stante. / Taïde è, la puttana /.../ (v.129-133)
O fato de ser católico não impede Dante de fazer uma crítica violenta à Igreja de seu tempo. Ele ansiava pelo retorno à simplicidade e ao idealismo dos primórdios da Igreja, anterior à conversão do imperador Constantino, que a dotou de poder temporal. O Canto XIX, dos simoníacos, contém uma alegoria da Igreja Católica que envolve sua crítica numa linguagem contundente: “De vós pastores ocupou-se o Evangelista (S.João)/ quando viu aquela que se assenta sobre as águas (a Igreja)/ prostituir-se com os reis;/ aquela que nasceu com sete cabeças / teve a força e o apoio de dez cornos,/ enquanto a virtude agradava ao seu marido” (o papa) (Di voi pastor s'accorse il Vangelista,/ quando colei che siede sopra l'acque/ puttaneggiar coi regi a lui fu vista;/ quella che con le sette teste nacque,/ e da le diece corna ebbe argomento,/ fin che virtute al suo marito piacque. - v.106-111). Segundo os comentaristas, essa alegoria (recurso literário amplamente utilizado no poema) foi inspirada numa figura do Apocalipse. As sete cabeças representam as sete virtudes e os dez cornos, os dez mandamentos. Atente-se para a linguagem peculiar utilizada: “puttaneggiar coi regi”...
No Canto XXVIII, dos que semearam a discórdia, a cisão, vemos Maomé com o corpo também cindido, aberto, mostrando as vísceras. Dante vê aproximar-se alguém “rasgado desde o queixo até onde se peida./ Por entre as pernas pendiam os intestinos;/ apareciam as vísceras e o triste saco,/ que merda faz daquilo que se engole” (rotto dal mento infin dove si trulla./ Tra le gambe pendevan le minugia;/ la corata pareva e 'l tristo sacco/ che merda
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fa di quel che si trangugia. -v.24-27).
Porém, a linguagem utilizada também pode ser mais sutil. Assim, no Canto XV, dos sodomitas, por exemplo, Dante usa de um jogo de palavras ao referir-se ao bispo de Florença que o papa, transferiu, pela sua conduta escandalosa, do Arno ao Bacchiglione, “onde deixou os dissolutos membros” (dove lasciò li mal protesi nervi- v.114), quer dizer, morreu. Segundo John Ciardi, a expressão mal protesi nerve contém um intraduzível jogo de palavras, pois nervi pode ser traduzido como o “órgão sexual masculino” e protesi como “ereto”, voltado para propósitos anti-naturais (mal); mas também nervi pode ser “nervos” e mal protesi “dissolutos”.
Usando a linguagem chula Dante estava usando a linguagem do povo. Usou-a como usou outras de suas características. A crendice popular, por exemplo. No Canto XXVI, ele afirma que “se próximo ao amanhecer se sonha o vero” (Ma se presso al mattin del ver si sogna- v.7), logo cairão sobre sua cidade natal os males previstos no sonho. Dante “como poeta do mundo secular” (Auerbach) incorpora tal crendice a seus versos assim como incorpora a linguagem chula. Quer com essas opções tornar seu poema mais próximo do espírito do povo. Lembrêmo-nos que ele sempre quis essa aproximação e tal desejo o levou a escrever a “Comédia” na linguagem falada pela gente simples, e não no latim dos eruditos, o que é coerente com o engajamento de sua poesia na defesa da visão de mundo católica. Aliás, o fato da “Comédia” ser um poema engajado prova que é possível haver simultaneamente engajamento a uma causa e grande poesia.
Saliente-se que não só a linguagem de palavras chulas é usada. Também é usada a linguagem de gestos 1) obscenos e blasfemos, quando Vanni Fucci faz figas a Deus, no início do Canto XXV e é, em consequência, imediatamente atacado pelas serpentes; 2) grotescos e hilários, pela atitude dos diabos no Canto XXI, que trata dos que praticaram a barataria (tráfico de influência). A certa altura do Canto, o zombeteiro Scarmiglione ameaça espetar Dante no traseiro, mas Malacoda manda-o aquietar-se. No final desse Canto, uma escolta de dez demônios vai acompanhar os dois poetas. Os diabos antes mostraram a língua para Barbariccia, como um sinal, e este em resposta “fizera do cu trombeta” (ed elli avea del cul fatto trombetta- v. 139).
Câmara Cascudo, em “Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil”, afirma, apoiando-se em E.R.Curtius, que o “flatus ventris” era um motivo muito apreciado na Idade Média: “Há longo anedotário sobre o assunto e, contemporaneamente, a literatura oral conserva a gosseira presença desse elemento de comicidade irresistível”.
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