quarta-feira, 4 de março de 2009

UM REPRESENTANTE DA ELITE PARANAENSE DO SÉC. XIX: O TEN-CEL CAETANO JOSÉ MUNHOZ


No ano do centenário da emancipação política do Paraná, em 1953, constatou-se “uma curiosa coincidência de significado histórico”, nas palavras do escritor paranaense Samuel Guimarães da Costa (1919-1997): os três poderes do Estado estavam nas mãos de bisnetos de Caetano José Munhoz. O chefe do poder Executivo era então Bento Munhoz da Rocha Neto, do poder Legislativo o deputado Laertes Munhoz e do Judiciário o desembargador Munhoz de Melo. O mesmo autor lembra ainda que Caetano José Munhoz “participara há cem anos passados das solenidades de posse do primeiro governador da Província Zacarias de Góes e Vasconcelos, por sinal homenageado e recepcionado em sua residência”. O fato revela a persistência da importância, na história social do Paraná, de uma daquelas famílias tradicionais que integram a classe dominante do Estado, conforme mostrou Ricardo Costa de Oliveira em seu substancioso estudo “O Silêncio dos Vencedores: Genealogia, Classe Dominante e Estado no Paraná”, publicado em 2001.
Mas quem foi Caetano José Munhoz, sobre quem há poucas e esparsas referências na bibliografia histórica do Paraná? Para saber mais sobre ele, levantei informações no jornal “Dezenove de Dezembro”, o primeiro a ser publicado no Paraná, cobrindo o período 1854-1890. O meio em que CJM viveu tinha uma população diminuta. Em 1853, quando a Comarca de Curitiba e Paranaguá se emancipou da província de S.Paulo, a nova província contava com uma população de pouco mais de 60 mil habitantes, e a da sua capital não chegava a 7 mil habitantes. Curitiba deixara de ser “vila”, para obter o “status” de “cidade”, apenas em 1842...
O tenente-coronel (da Guarda Nacional) CJM nasceu em Paranaguá em 1817. Com relação à sua origem social, sabe-se que seu pai, Florêncio José Munhoz, possuía uma fazenda na baía de Paranaguá, onde criava gado (mais de 80 reses) e mantinha lavoura, além de dedicar-se também ao comércio exportador. A mãe, D. Luíza Lícia de Lima, trineta de Baltazar Carrasco dos Reis, pertencia a uma família de posses, pois seu pai era arrematante de um contrato público relativo à navegação do rio Nhundiaquara, em Morretes. O bisavô dela é considerado o fundador de Antonina, uma vez que a cidade surgiu em torno da capela erigida nas terras dele.
CJM veio para Curitiba muito moço. Seu nome está associado à instalação de um dos primeiros engenhos de erva-mate aí localizado, em 1834 (até então eles só existiam no Litoral). Era movido a força humana e hidráulica. No verbete sobre CJM do “Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná”, de Ermelino de Leão, consta esta descrição curiosa dos trabalhadores cobertos do pó verde da erva: “Os operários do engenho eram todos escravos que durante o trabalho, somente vestidos com uma tanga de aniagem ou saco velho, apresentavam um aspecto curioso: à negra epiderme aderia um pó verde e as sobrancelhas, bigodes e cabelos cobriam de
camadas intensas de ouro verde”. (vol. 1, p.247). As águas do rio Belém, que atravessa Curitiba, seriam aproveitadas para mover o engenho da Glória (cujo nome aliás daria origem ao do bairro-- Alto da Glória), localizado em frente ao atual prédio do Colégio Estadual do Paraná. Foi na residência junto a esse engenho que CJM oferecerá, vinte anos depois, a recepção antes mencionada ao destacado político do Império Conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcelos, nomeado por D.Pedro II o primeiro presidente da nova província.
Em 1853, o ciclo do mate estava em plena expansão, tendo iniciado por volta de 1820, com a vinda a Paranaguá do experiente comerciante argentino Francisco Alzagaray, conhecedor das exigências do mercado platino. A partir de então, o mate seria o sustentáculo da economia paranaense por mais de cem anos. A maior proximidade dos ervais e a rentabilidade auferida justificavam a instalação de engenhos no planalto curitibano, embora mais distante dos portos de Paranaguá e Antonina, de onde se exportava o produto para a Argentina, Uruguai e Chile. Era a demanda desses mercados que estimulava o desenvolvimento da economia do mate no Paraná.
CJM viria a ser um dos principais ervateiros de seu tempo, produzindo um mate de boa qualidade (livre de falsificações), com marcas conceituadas naqueles mercados, conforme atestam referências no jornal “Dezenove de Dezembro” e no relatório de Louis Couty, preparado por esse especialista francês para o Ministério da Agricultura do Império.
CJM foi o primeiro a implantar engenho a vapor em Curitiba, em 1872, antes mesmo que essa fonte de energia fosse utilizada pelo Barão do Serro Azul, na fábrica Tibagy (de 1878). Participou de várias exposições provinciais e nacionais, além da Exposição Universal de 1876, na Filadélfia, realizada em comemoração ao centenário da independência americana, que foi visitada por D.Pedro II. Recebeu vários prêmios nessas ocasiões.
A sua posição de destaque no âmbito do sistema produtivo levou-o a ocupar outras posições de relevo na comunidade curitibana. Assim, ele foi tenente-coronel comandante de um corpo de cavalaria da Guarda Nacional de Curitiba e deputado à Assembléia Legislativa Provincial nos períodos 1856-57 e 1860-61 (os mandatos então eram bienais). Não se destacou nessas atividades. Como comandante da Guarda Nacional, não conseguiu cumprir as metas estabelecidas pelo governo central para o recrutamento de voluntários para a Guerra do Paraguai, razão por que acabaria sendo suspenso de tal função pelo presidente Horta de Araújo, embora razões políticas devam ter pesado mais nessa decisão (o presidente era vinculado ao partido Liberal). Como deputado, também não se notabilizaria, exercendo, por um período, as funções de secretário da Assembléia. De qualquer forma, deu sua contribuição à Assembléia quanto da discussão do projeto destinado a regulamentar a exploração e processamento da erva-mate, visando coibir as falsificações e assegurar a boa qualidade da erva-mate exportada pelo Paraná. Ainda na condição de político, ligado ao partido Conservador, vale destacar que CJM foi eleito vereador de Curitiba para o quadriênio 1877-80. Porém só exerceu esse mandato por alguns meses, pois faleceu em julho de 1877, aos 60 anos de idade.
Dentre os cargos relevantes que ocupou, acredito que se saiu melhor no de juiz municipal substituto, para o qual foi nomeado por diversos presidentes da província. A legislação da época permitia a nomeação para esse cargo de pessoas leigas, “cidadãos notáveis do lugar, pela sua fortuna, inteligência e boa conduta”. CJM ocupou-o por 15 anos, nos períodos 1854-62 e 1870-77. Parecia corresponder mais ao seu perfil psicológico. Era homem “de caráter firme e princípios severos e inabaláveis”, como afirma o genealogista Francisco Negrão (1871-1937), amante da ordem e da estabilidade, requisitos indispensáveis para o exercício da atividade empresarial, sua verdadeira vocação.
Aparentemente CJM pertenceu à corrente antiabolicionista do partido Conservador, liderada por Manoel Eufrásio Correia, genro do Visconde de Nácar, o homem de negócios mais importante de Paranaguá e região, que se destacava no comércio e outras atividades econômicas e possuía 50 escravos em suas propriedades (o Visconde era procurador e compadre de CJM). Para avaliar o grau de conservadorismo de Manoel Eufrásio, basta dizer que ele se opusera à aprovação do projeto que dava a liberdade aos filhos de escravos, conhecida depois como “Lei do Ventre Livre”, promulgada durante o gabinete chefiado pelo Visconde do Rio Branco, do seu próprio partido.
CJM também desenvolveu outras atividades, de interesse comunitário. Nesse sentido, participou da Comissão de Saúde, presidida pelo Dr.Murici, que propôs medidas para que a cidade se prevenisse contra a ameaça do “cholera morbus”. Colaborou para a administração da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba. Contribuiu financeiramente para a fundação da Biblioteca Pública do Paraná. Participou, como tesoureiro, da administração da Associação Paranaense de Aclimação, criada pelo presidente Lamenha Lins e destinada a “aclimar” espécies vegetais à nossa realidade. Em 1876, foi um dos paraninfos da cerimônia de lançamento da pedra fundamental da nova matriz, atual Catedral de Curitiba.
CJM casou-se duas vezes, a primeira com D.Francisca Cândida de Assis Franco (bat. 1819-61), filha do português João Gonçalves Franco (pessoa conceituada na sociedade local que chegou a ser presidente da Câmara Municipal de Curitiba) e de D. Escolástica Angélica Bernardino, filha por sua vez de um dos primeiros “mestres-régios” do Paraná, o ten-cel Manoel Teixeira de Oliveira Cardoso. Dentre os irmãos de D. Francisca, incluem-se o brigadeiro Manoel de Oliveira Franco, o comendador João de Oliveira Franco e a primeira professora do ensino público de Curitiba, Rita Ana de Cássia Franco (há um retrato a óleo dela no Museu Paranaense, pintado por Maria Amélia d’Assumpção).
Desse primeiro casamento de CJM nasceram dez filhos, três dos quais são: 1) Maria Leocádia, que casou com o português Manoel Martins da Rocha, pais de Bento Munhoz da Rocha, de quem descem diretamente dois governadores do Paraná, seu filho Caetano Munhoz da Rocha, que presidiu o Estado de 1920 a 1928 e o neto, de mesmo nome, que o governou de 1951 a 1955, quando deixou o governo do Estado para assumir o ministério da Agricultura na gestão Café Filho. Bento foi simultaneamente político e intelectual, católico neo-tomista; escreveu vários livros sobre temas sociológicos e históricos; 2) Caetano Alberto, pai do escritor Alcides Munhoz, que polemizou com Sílvio Romero sobre a imigração alemã para o País, e avô do deputado Laertes Munhoz, presidente da Assembléia Legislativa do Paraná em 1953; 3) João Alberto, avô do desembargador Munhoz de Melo, chefe do poder Judiciário naquele ano.
Do segundo casamento de CJM, com D.Narcisa de Paula Xavier (1844-1909), sobrinha-neta de Francisca e vinte e sete anos mais nova do que ele, nasceram oito filhos, inclusive D. Maria Munhoz, que se casou com o importante industrial de erva-mate Jordão Mäder, pais do prof. Algacyr Munhoz Mäder, ex-reitor da Universidade Federal do Paraná (1971-73).
A questão da maior ou menor importância da escravidão no ciclo do mate da economia paranaense é assunto controverso. Enquanto Otavio Ianni, na obra “As Metamorfoses do Escravo”, salienta essa importância, Temístocles Linhares, autor da “História Econômica do Mate”, a minimiza, levando em conta as características da atividade ervateira e o alto custo de um escravo.
De qualquer forma, apesar da existência da lei de 1831, que proibia o tráfico negreiro, este, como se sabe, continuou ocorrendo no País, até meados do século, e Paranaguá continuou sendo um importante centro de comércio de escravos, que inclusive se intensificou a partir daquele ano, conforme afirma o historiador paranaense Romário Martins (1874-1948). Foi na baía de Paranaguá, aliás, que ocorreu, em 1850, o episódio do Cormorant, cruzador britânico que perseguiu navios negreiros até dentro da baía, sendo rechaçado por tiros de canhão desfechados pelo forte da ilha do Mel, o qual criaria um grave incidente diplomático com a Inglaterra...
CJM, como vimos, usava escravos em seu engenho. E o jornal “Dezenove de Dezembro” faz diversas referências a escravos pertencentes a ele, transcritas a seguir:
Dia 20.
Pela patrulha foram recolhidos à prisão, à disposição do Exmo. Sr. Dr. chefe de polícia o alemão Carlos Forster, por ébrio, e o escravo Marcelo, do tenente-coronel Caetano José Munhós, em conseqüência de haver sido encontrado depois do toque de silêncio.
(DD de 25.03.1865- p.4; seção “Repartição da polícia”)
Pelo código de posturas de Curitiba (lei nº 79 de 11.07.1861) havia multas para senhores de escravos e castigos para escravos que andassem pelas ruas “depois do toque de silêncio” (hora de silêncio ou recolher: 9hrs da noite no inverno; 10 hrs no verão).
ESCRAVO FUGIDO
Acha-se fugido o escravo Gabriel, crioulo, de idade 20 anos, cor preta, um pouco magro; quem o apreender e levá-lo a seu senhor, Caetano José Munhós, será gratificado.
(DD de 13.01.1866-p.4)
Na seção “Óbitos” consta o de “Antônio, 40 anos, escravo do tenente coronel Caetano José Munhós”
(DD de 28.02.1866- p.3)
Em “Noticiário”, sob o título “Partes diárias da polícia”, consta nota afirmando que no dia 13 “foram presos, à ordem do Exmo. Sr. Dr. chefe de polícia ‘alguns escravos’, que são citados, inclusive “Marcelo, de Caetano José Munhós” /.../ “por serem encontrados em um divertimento proibido”
(DD de 19.02.1870- p.3) Batuques e fandangos eram proibidos. A nota ainda afirma que Marcelo foi posto em liberdade no dia 16.
Em “Noticiário” se informa que no cartório do tabelião Nestor Borba foram registradas gratuitamente durante 1871 diversas cartas de liberdade passadas “sem ônus algum”, “condicionalmente” e “por compra de liberdade” (DD de 10.01.1872- p.3). Dentre estas últimas consta aquela concedida à escrava Graciana—do tenente coronel CJM.
ESCRAVO FUGIDO-
Caetano José Munhós gratifica a quem apreender o seu escravo de nome Justo, que se acha fugido há alguns dias, constando estar acoutado em uma casa desta cidade, fato contra o qual protesta proceder com todo o rigor da lei.
Curitiba, 20 de fevereiro de 1877 (o anúncio é publicado no DD de 21.02.1877- p.4, e republicado no DD de 24.02.1877- p. 4)
O nome de CJM também está associado a escravos em outra condição. Um dos documentos existentes no acervo do Arquivo Público do Paraná é assinado por CJM na condição de juiz municipal 2º suplente. Ele comunica ao presidente Zacarias a execução, em 20 de julho de 1854, às 16:00 horas, do réu escravo Joaquim, que assassinou seu senhor, Bento Alves Fontes, na fazenda deste, em S.José dos Pinhais. Anteriormente, o juiz de direito havia determinado ao juiz municipal que fizesse executar a pena de morte imposta ao réu, que deveria ser por enforcamento (cf. “Catálogo seletivo de documentos referentes aos africanos e afrodescendentes livres e escravos”, p. 27-29 e 33-34).
Dez anos depois, em 1864, conforme despacho publicado no “Dezenove de Dezembro” (seção “Expediente da Presidência” de 19 de outubro), a Presidência comunica ao Chefe de Polícia que ficou “ciente de terem sido entregues a João da Costa Cabral, encarregado pelo ten-cel Caetano José Munhós procurador de Bernardo Gavião & Ribeiro & Gavião, os escravos de nomes Modesto, Firmino, Salvador, Maurício, Samuel, Estolano, Clemente, Florencio e Juvencio, pertencentes aos frades carmelitas e arrendados por aqueles, a fim de serem conduzidos à província de S. Paulo” (DD de 5.11.1864- p. 2). Como se vê, até frades eram proprietários de escravos! (e isso ocorre em 1864, quando o tráfico já estava proibido e a consciência antiescravista nacional bem desenvolvida. Nessa época, outros países da América do Sul já haviam abolido a escravatura; por exemplo, a Colômbia em 1851 e a Argentina em 1853).
(Publicado na "Revista da Academia Paranaense de Letras" nº 54, abril de 2007)

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